O directório de uma só potência

O euro tem criado grandes dificuldades, designadamente aos países com economias mais débeis, e tem sido um factor de redução dos salários reais (desvalorização interna), de liquidação do “Estado social” para a maioria dos países e um factor de divisão na União Europeia.

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Carlos Carvalhas falou em voltar ao escudo no último congresso do PCP Enric Vives-Rubio

Quando António Costa diz que antes das eleições na Alemanha não se pode negociar a dívida, está a dizer e a reconhecer implicitamente que, no essencial, quem decide na União Europeia é a Alemanha.
António Costa podia ter evocado as eleições em França, ou na Holanda, que até antecedem as alemãs, mas não o fez.

É o reconhecimento de que a União Europeia só formalmente é uma união de iguais. Curiosamente, esta sua afirmação não suscitou estranheza democrática entre a generalidade da “beatitude europeísta”. É a aceitação tácita do “directório de uma só potência” como normal!

A França ainda pesa, mas subordina-se, como exemplarmente o demonstrou Varoufakis no dramático caso da Grécia, em relação às posições de Hollande e Moscovici, primeiro de apoio ao Governo grego e depois de alinhamento com a Comissão e o Conselho da União Europeia. Esta atitude é também sentida negativamente pelas camadas populares francesas e aproveitada pela extrema-direita e forças mais reaccionárias. Quando há tempos houve uma contestação generalizada à senhora Merkel e pediram um comentário a madame Le Pen, esta respondeu liminarmente, desarmando os seus adversários: “A sra. Merkel defende os interesses da Alemanha, os nossos governantes é que não defendem os interesses da França!”

O rumo da União Europeia tem sido ditado cada vez mais pela Alemanha, a principal beneficiária do euro e também cada vez mais à margem da vontade popular da maioria dos países da União Europeia. As políticas ditas “de austeridade” são de facto políticas de concentração da riqueza, embora enfeitadas com fórmulas vazias de conteúdo e por isso hipócritas — “solidariedade europeia”, “nivelamento por cima”, “igualdade no progresso”, “coesão económica e social” — associadas a uma invocação recorrente dos valores europeus. Mas que valores? Os valores da Europa da Inquisição ou a das Luzes e do humanismo? Os valores da Europa das duas guerras mundiais, do bombardeamento da Jugoslávia, dos refugiados do Mediterrâneo, ou da Europa da Revolução Francesa e da grande Revolução de Outubro?

Depois espantam-se e insurgem-se contra o ascenso dos populismos. Mas o ascenso dos populismos não será a outra face do desprezo e da marginalização social e democrática das camadas populares, designadamente pela social-democracia? O crescimento destas forças não se deverá também aos políticos e às elites que confiscam a democracia em benefício das oligarquias?

Portugal

Portugal é hoje um país formalmente independente, mas cada vez mais dependente, e pesa relativamente pouco na hierarquia dos países da União Europeia aos olhos da potência dominante.
Não pode fazer um acordo com a Comissão, como faz a França, para não cumprir temporariamente o défice, com o silêncio da Alemanha e do seu impetuoso ministro das Finanças.

Não detendo a política monetária, nem cambial e cada vez menos a política orçamental, Portugal está nas mãos dos ditos “mercados” (bancos, companhias de seguros, fundos de investimento) para se financiar e nas mãos do Banco Central Europeu e de quem nele manda, em relação ao nível das taxas de juro e da liquidez do sistema financeiro.

O actual Governo, ao pôr em causa, mesmo que muito limitadamente, a política de austeridade e ao reverter algumas das medidas mais anti-sociais, foi desde logo considerado pelas forças dominantes da UE um mau exemplo e um alvo a abater.

Já afirmei e volto a afirmar que um golpe não militar, mas à brasileira, de pantufas, hipócrita e cínico, esteve ensejado para 21 de Outubro passado. Era o dia em que a DBRS se ia pronunciar. O golpe foi precedido de uma ampla campanha negativa interna e no estrangeiro sobre a situação financeira e económica do país para o justificar. Quem involuntariamente melhor o revelou na imprensa portuguesa foi Pedro Brás Teixeira, ex-secretário de Estado de Manuela Ferreira Leite.

A sua convicção era que a DBRS, agência de rating canadiana que serve de cobertura ao banco central, deveria diminuir as perspectivas da dívida portuguesa de “estáveis” para “negativas”, com graves consequências financeiras, económicas e políticas. Com a forte subida de juros, concluía, Brás Teixeira: “Isso colocará uma pressão máxima sobre a coligação à esquerda e não é seguro que esta lhe sobreviverá.” A direita estava certa do golpe. Poucos dias após a publicação deste artigo Passos Coelho, em Coimbra, afirmava peremptório que sempre acreditara no falhanço do modelo do PS, mas que nunca pensara que fosse tão cedo, logo seguido dos comentários do mesmo estilo de Maria Luís Albuquerque e dos comentadores de direita. O golpe foi abortado porque a situação se agravou na União Europeia com o “Brexit”, refugiados, crise da banca italiana, do Deutsche Bank e também porque a situação do défice orçamental melhorou. Mas a perspectiva de golpe não foi abandonada. Refiro este episódio para chamar a atenção para o caminho estreito que temos pela frente, com o garrote da dívida, as exigências do Tratado Orçamental e a questão do euro, como pressão negativa sobre a competitividade da nossa economia.

A dívida externa, o euro e a soberania financeira são questões centrais. Portugal não pode ficar continuamente sob a chantagem dos mercados, do BCE e da sua correia de transmissão — a DBRS.
O esforço financeiro que a dívida exige é colossal e vai continuar a penalizar o crescimento, o investimento e a situação social por muitos e muitos anos.

ara se ter uma ideia da drenagem de recursos — dívida, privatizações —, lembro que nestes últimos dez anos, de 2007 até Julho deste ano, pagámos em termos líquidos de juros, lucros e dividendos, em consequência do crescente domínio da economia portuguesa pelo estrangeiro, cerca de 56.500 milhões de euros!

Para os que, com leviandade e certamente de carteira cheia, afirmam que com a política deste Governo o país está a distribuir aquilo que não produz, é de recordar que, ao contrário do que muitos julgam, o saldo orçamental do Estado sem juros (saldo primário) é positivo. Este ano deverá atingir os 3546 milhões, dez vezes mais que em 2015, e para 2017 está previsto 5079 milhões. Estes recursos muita falta fazem na saúde, na investigação e no investimento. Distribuir aquilo que não se produzia fizeram os governos anteriores, mas para um só destinatário, o sistema financeiro, melhor dizendo, banqueiros e grandes accionistas para depois a banca cair nas mãos do estrangeiro. Os desequilíbrios da balança comercial são sobretudo tributários da política de crédito da banca, da fiscalidade e da fragilidade a que chegou o nosso aparelho produtivo, com reflexos naturalmente na dívida. Pela primeira vez nas últimas décadas o investimento realizado desde  2012 foi inferior ao investimento consumido nestes anos, isto é, o nível de investimento foi tão baixo que nem sequer deu para repor a capacidade produtiva!

A renegociação da dívida vai-se impor — a realidade tem muita força — mas quanto mais tarde pior.
Atrevo-me a sugerir a António Costa e a Marcelo Rebelo de Sousa, que leiam, mesmo em resumo, o Back Ground Paper Evaluation Office do F.M.I, The Portuguese Crisis and IMF.

 

A questão do euro

 

O euro é uma moeda simpática, mas muito cara para a nossa economia. Na União Europeia as exportações portuguesas seriam das que mais beneficiariam com o regresso à moeda nacional (ver estudos deste ano do FMI). Desde que o euro entrou em circulação, em 2002, o crescimento médio do PIB português é praticamente nulo. O euro tem criado grandes dificuldades, designadamente aos países com economias mais débeis e tem sido um factor de redução dos salários reais (desvalorização interna), de liquidação do “Estado social” para a maioria dos países e um factor de divisão na União Europeia.

É uma moeda subavaliada para a Alemanha, beneficiando as suas exportações, e sobreavaliada para a maioria dos outros países. Sem o euro a moeda alemã (marco) estaria muito mais valorizada e os excedentes deste país seriam bem menores. A  Alemanha que tinha uma balança deficitária (-1,4% do PIB) em 1999 antes do estabelecimento do euro, passou para um excedente de mais de 8% do PIB em 2015. E quanto às paridades de poder de compra per capita, tomando como 100 o valor médio da UE, a Alemanha passou de 116,7 em 2005 para 125 em 2015, enquanto a Itália no mesmo período de tempo passou de 105,6 para 95,1 e Portugal de 79,1 para 77,1.

A diferença entre as economias da zona euro é tal que um orçamento comunitário que realizasse algum equilíbrio implicaria, só para Portugal, Grécia, Espanha e Itália, um custo para a Alemanha estimado entre 8% a 12% do seu PIB. Os federalistas bem podem continuar a ter ilusões, uns apelando à solidariedade da Alemanha, outros acusando-a de egoísmo, porque nunca se dignaram a avaliar o montante dessas transferências!

A Alemanha nunca aceitará pagar tal factura.

Neste quadro, aumenta na Europa a influência das forças políticas e dos movimentos sociais, bem como dos economistas, sindicalistas e entidades patronais que põem em causa o euro.
Tendo em atenção as eleições que se vão seguir na União Europeia (a que se poderão juntar as da Itália e até da Grécia) e após a derrota de Renzi — a Itália também está com um PIB ao nível de 2002 —, mais se justifica que se prepare o país para uma eventual dissolução do euro ou para uma saída unilateral por vontade própria ou exigida. Acresce que não está fora do horizonte a possibilidade de uma nova crise financeira que tudo precipitaria.

Não estamos perante uma abstracção ou um exercício académico. Nem se acene com o catastrofismo (aumento da inflação, aumento da dívida...), para evitar uma reflexão serena e racional.
A questão da dívida, mas não só, é uma das que exigem reflexão e medidas atempadas. Em direito internacional o que conta não é a nacionalidade dos credores, mas a nacionalidade dos contratos.
Uma dívida pública ou privada emitida em direito português terá como moeda de pagamento a moeda em curso nesse país (Lex Monetae — A Dictionary of Modern Legal Usage. Oxford University Press. p. 526 citado J. Sapir).

Por isso, encarando todas as eventualidades, é um imperativo nacional a redução dos contratos da dívida externa não tituladas em direito português que representará cerca de 25%. A dissolução negociada do euro seria a melhor solução para a Europa e para Portugal, encontrando-se depois formas de cooperação monetária muito mais realistas e progressistas, mesmo na fase do necessário e apertado controlo do movimento de capitais. A Alemanha, perante o aumento das tensões, contradições e novas crises do euro poderá vir a inclinar--se para a superação do euro.

Ainda quanto à preparação do país, talvez não fosse negativo ouvir o dr. Victor Constâncio, mesmo no Conselho de Estado — sempre teria mais justificação do que o sr. Draghi —, desde que este se conseguisse libertar mentalmente da pseudo- -independência de titular do banco central e do fetiche do euro.

Mas mesmo com a resolução da questão do euro, se não resolvermos o problema da dívida, esta regressará de novo, bem como a pressão sobre os salários, pensões e “Estado social”.
Queremos ter mais 16 anos de estagnação, troikas, chantagens e tutelas?

Queremos uma marcha forçada, à margem dos povos, sem consultas populares e sobretudo sem referendos para uma Europa ainda mais supranacional, com órgãos não eleitos, como o BCE e a Comissão a sobreporem-se às instituições nacionais com legitimidade democrática? Então não se espantem que os povos venham a desprezar os “eleitos” e a correrem com eles. Nem sempre na boa direcção.

Pertencente a uma força patriótica e profundamente internacionalista, considero que na situação actual a recuperação da nossa soberania e independência nacional é uma questão crucial para o futuro do nosso país.

 

Membro do comité central do PCP

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