“Já não entendo o mundo”: a Europa na era das incertezas

Roma e Viena são hoje as capitais da Europa. No referendo italiano estão em jogo a estabilidade e as reformas políticas. As presidenciais austríacas poderão consagrar a “normalização” da extrema-direita, que se vai aproximando do poder.

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Duas votações, a última volta das presidenciais austríacas e o referendo italiano sobre as reformas constitucionais, voltam a pôr em causa a natureza política da Europa e terão consequências não apenas nos dois países mas nos equilíbrios geopolíticos do Continente. A política europeia é sempre "local", no sentido de que é determinada em última análise pelo voto nas eleições nacionais.

Na Itália, os populistas de Beppe Grillo, a extrema-direita da Liga Norte e a maioria dos eleitores de Berlusconi — e ainda algumas correntes de esquerda — dizem "não" à reforma constitucional proposta pelo primeiro-ministro Matteo Renzi, ameaçando abrir uma crise política ou até uma situação de caos institucional, com reflexos na União Europeia. Mas o cenário catastrófico de uma saída da Itália do euro parece hoje excluído.

Na Áustria, Norbert Hofer ameaça ser o primeiro presidente da República de extrema-direita eleito na Europa do pós-guerra. Mais do que isso, poderia a seguir abrir caminho a uma conquista democrática do poder pelo Partido da Liberdade (FPÖ), de origem neo-nazi, que é hoje a força que ocupa o centro do tabuleiro político nacional. O resultado terá repercussões directas nos equilíbrios da Europa Central, onde populismo e nacionalismos estão em expansão. A vitória de Hofer significaria a "normalização" da extrema-direita, susceptível de aceder à área do poder.

O elo fraco

"Os eleitores são hoje o elo fraco da Europa", escreveu o Financial Times, pois votam cada vez mais nos partidos anti-sistema e são atraídos pelos nacionalismos. Que se passa? Não se trata apenas, nem sobretudo, de uma adesão ideológica.

Antes de mais, domina um sentimento: "Já não entendo o mundo." A frase é do sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015), numa entrevista de 2014. Não falava como cidadão comum, pois acabava de publicar um polémico livro, A Europa Alemã (Lisboa, Edições 70, 2013), mas punha-se na pele do eleitor. "Vivemos uma época em que toda a gente fala de catástrofes. (...) Sabemos o que acontece quando um automóvel avaria ou um computador rebenta, mas não sabemos o que acontece se o euro ou a União Europeia rebentam."

Seria, até certo ponto, uma nova situação histórica. "Os cidadãos, as pessoas na rua, enfrentam situações que não entendem, não percebem o que se está a passar. ‘Eu já não entendo o mundo’ seria uma boa frase para definir como se sentem. Um pouco por toda a parte, a Europa está confrontada com uma situação para a qual os especialistas não têm resposta, os políticos não têm resposta e, consequentemente, as pessoas não têm resposta. E, por outro lado, a sociedade está mover-se ao mesmo tempo, pensando em todo o tipo de alternativas."

Mais de 20 anos de debate

Passemos a alguns sintomas. Cresce a aversão à política, o Estado-nação está a perder soberania, o que gera mais insegurança, os trabalhadores sentem a "Europa" como ameaça. Grande parte disto não é novo. A crise de 2008 e as atribulações do euro fizeram crescer o eurocepticismo e mostraram uma UE dividida entre credores e devedores, entre Norte e Sul. Mas o coração do problema, a relação entre os cidadãos e a política ou entre os trabalhadores e o poder, estão em debate desde há mais de duas décadas.

Dois exemplos. O historiador italiano Giovanni Orsini acaba de publicar um ensaio —"Como nasce a antipolítica" (jornal Il Foglio, 14 de Novembro) — em que analisa o surto populista italiano na crise de 1992-93, em que o velho sistema político desabou por iniciativa dos juízes com a maciça aprovação da opinião pública. Orsini sublinha uma série de factores, de que cito alguns: a evolução do sistema mediático, a insatisfação económica, a nova relação entre o poder judicial e os partidos em perda de representatividade, a ineficiência de um sistema constitucional mais concebido para garantir do que para decidir, provocando o bloqueio político, a corrupção e a explosão da dívida. Segue-se a ascensão do populismo mediático de Silvio Berlusconi.

Note-se que, antes disso, a Itália conhecia desde o fim dos anos 1980 um virulento populismo, o da Liga Lombarda, depois Liga Norte, de Umberto Bossi, uma "insurreição" do Norte rico contra a "Roma Ladrona" e o centralismo administrativo. Hoje, afastado Bossi, a Liga foi "lepenizada" por Matteo Salvini e disputa a Berlusconi a hegemonia da direita.

Passando a França e à relação entre povo e política, resumia em 1997 (La Faute aux élites), o historiador e jornalista Jacques Julliard: desmoralizado e abandonado pelas elites, o povo perdeu a sua bússola e a sua identidade para mergulhar no populismo. Julliard acusava as elites políticas e tecnocráticas da esquerda — e também aqueles revolucionários "que mudaram de proletariado nos anos que se seguiram a 1968. Substituíram os operários pelos imigrantes e passaram para estes o duplo sentimento de temor e de compaixão que o proletário geralmente inspira."

Concluía: "As classes populares não são por natureza mais conservadoras ou repressivas; são as mais expostas, eis tudo". Cinco anos depois, Jean-Marie Le Pen batia o socialista Lionel Jospin na primeira volta das presidenciais.

O que provoca perplexidade é a indiferença a um problema tão fundo, seguindo o velho princípio de que não há questão que o tempo não resolva: para explodir depois.

"Lepenização" da Europa

A crise de 2008, os constrangimentos da dívida e as desventuras do euro multiplicaram a potência dos populismos. A crise não só alimenta o populismo como amplifica os sentimentos de insegurança e medo. "Aparentemente, é o cocktail entre a crise do desemprego e o medo do ‘outro’, frequentemente encarado como terrorista mesmo antes de [ser visto como] imigrante, o elemento que marca a ascensão populista dos últimos anos a um ritmo vertiginoso", anota o politólogo italiano Luca Ricolfi. A onda alastrou a países do Norte, sem desemprego, como resposta à vaga dos refugiados. Aos populismos junta-se agora uma onda de nacionalismo, que poderá ser potenciada pela nova América de Trump.

Na França, Marine Le Pen explora com sucesso a insegurança dos cidadãos. "A base programática da FN é sempre a ‘preferência nacional’: reservar os empregos, os alojamentos, as prestações sociais aos franceses", escreve a politóloga Nonna Mayer. A xenofobia concentra-se no árabe. O islão torna-se o inimigo principal. Os atentados jihadistas fazem o resto. Mas esta extrema-direita soube tornar-se "democrato-compatível". A islamofobia passa ser justificada em nome dos valores laicos e republicanos.

A sua inteligência política não deve ser subestimada. A extrema-direita não conquistou (ainda) o poder em nenhum país europeu. A sua grande vitória é ter imposto a sua agenda política, os novos temas de debate, da denúncia do establishment ao tema da imigração, passando a condicionar os governos. Aqui reside a "lepenização" da Europa.

Não tendo responsabilidades de governo, este populismo simplifica os problemas ao extremo, o que lhe permite fazer propostas simples e sedutoras. Daí decorre, a par da capitalização das "cóleras" populares, a sua capacidade de mobilização. Face aos partidos tradicionais os populistas surgem como o "novo". Conclui Meyer: "Paradoxalmente, estes partidos da extrema-direita são os últimos a vender sonhos..."

Como conter o populismo? O politólogo espanhol Javier Redondo anota que estão em competição duas estratégias. Uma, defensiva e dominante, aposta na recuperação económica. Outra, ofensiva, joga no terreno político do populismo para o neutralizar. O exemplo seria Renzi. Conquistou o Partido Democrático e ascendeu ao governo sob o lema de "destruir" o antigo sistema político e a "velha casta". No poder, trocou esse retrato pelo de "homem de Estado". Regressou à velha postura nas últimas três semanas, tentando mostrar que é ele e não Grillo quem quer e quem pode reformar a Itália e que votar contra as reformas significa consolidar o statu quo. Corre o risco de ter regressado tarde à imagem de origem.

Acrescente-se que há uma terceira exigência relativa ao frustrante funcionamento dos partidos políticos, distantes dos eleitores e viciados na lógica mediática. Isto estimula a ideologia referendária, em que os eleitores exigem que o poder de decidir lhe seja devolvido. O risco da legítima pulsão referendária é que os eleitores não respondam à questão posta, mas que a utilizem para exprimir o mero protesto. O voto de hoje na Itália não é, de facto, sobre a reforma constitucional mas a favor de Renzi ou contra Renzi.

UE e nacionalismos

Muito se tem escrito sobre o regresso das nações, em contraponto ao centralismo ou à ineficácia das instituições comunitárias. É uma realidade. Mas merece uma primeira nota. Uma parte da impotência comunitária deve-se à ocultação de um mecanismo fundamental: o que passa por ser a "decisão da UE" resulta da negociação entre políticos que encarnam aberta ou disfarçadamente "28 interesses nacionais".

Em segundo lugar avisa Mario Monti, ex-primeiro-ministro italiano: "Alguns poderes hoje exercidos em comum e com determinadas regras da UE, seriam devolvidos aos Estados. Mas cuidado: em geral, esses poderes foram transferidos para a esfera comunitária precisamente porque os Estados constatavam que já não os podiam exercer, porque a globalização estava a transferir, de facto, esses poderes nacionais para os mercados, para as multinacionais e para as grandes potências extra-europeias." O risco "é um momento de breve excitação seguido de uma permanente impotência."

Os nacionalismos estão em ascensão. Volta a prevenir Monti: "Numa Europa sem a União Europeia, os nacionalismos tenderiam a entrar em choque entre si." A Europa tornar-se-ia uma "selva". E pergunta: pensam Marine Le Pen ou Beppe Grillo que os seus países se tornariam mais fortes se a França e a Itália regressassem ao franco e à lira ou a Alemanha ao marco?

Um dos problemas da política europeia é que os líderes políticos não aprenderam a falar ao povo, aos eleitores e às nações para explicar estas coisas "triviais".

A visão apocalíptica

Falta conhecer os resultados da Itália e da Áustria. Mas antevêem-se reacções catastrofistas, sobretudo no caso da Áustria. Pensando nos Estados Unidos e em Donald Trump, adverte a politóloga Alison McQueen, da Universidade de Stanford: "Uma visão do mundo apocalíptica, que tem um longo historial na política dos EUA, leva a posições extremamente perigosas. A primeira é abandonar a participação política (...) A segunda postura é a resignação."

A propósito das dificuldades da construção europeia, dizia Étienne Davignon, antigo vice-presidente da Comunidade: "As verdadeiras derrotas são apenas as que se aceitam sem reagir."

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