Há duas Cubas em Miami e a mais antiga está a perder a luta

A Florida volta a ser um estado crucial para a decisão das eleições nos EUA. A tendência de voto vai-se invertendo, a favor do Partido Democrata.

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Hillary Clinton entre Jennifer Lopez e Marc Anthony Justin Sulliva/AFP

Há 78 semanas seguidas, todos os domingos até às duas da tarde, Pablo Aguabella e o seu grupo de dissidentes cubanos juntam-se no n.º 3598 da famosa Calle Ocho, no coração da pequena Havana que há em Miami. Está aqui para gritar contra os Castro, Fidel e Raúl, e não esconde a emoção quando da coluna de som salta uma homenagem aos balseros nas palavras e na música de Amaury Gutiérrez: “¿Quién pagará por tu vida, hermano que no llegaste?” Mas Aguabella e muitos outros cubanos americanos mais velhos têm agora uma nova luta pela frente, mais difícil de vencer do que o regime que tanto odeiam: os seus filhos e netos, criados à sombra da geração Obama, estão rapidamente a transformar este bastião do Partido Republicano nesta Miami latina num grito pelo fim do embargo, que depois isso dos Castro logo se vê.

Hoje são apenas dez, mais um megafone, bandeiras de Cuba e um cartaz “No Castro, No Problem”, mas Pablo Aguabella garante que chegam a juntar-se várias dezenas. Desta vez não, talvez porque está a chover e o vento é tanto que arrasta sacos, latas de cerveja e refrigerantes pela rua como se alguém estivesse lá ao fundo a precisar deles com muita urgência.

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Alexandre Martins

Têm quase todos mais de 60 anos, excepto Eduardo Salazar Garcia, que é apontado como exemplo de que a juventude cubana em Miami mantém a tradição anti-Castro, do alto dos seus pouco millenials 45 anos de idade. “O maior problema é a desinformação”, diz Garcia no momento em que é interrompido por um automobilista que passa e grita “Fidel Castro!” - ainda assim uma gota de água num oceano de buzinadelas de incentivo ao protesto.

“Cuba faz negócios com 193 países, incluindo com os Estados Unidos. Nunca teve nenhum embargo, sempre teve relações com o mundo inteiro. A ditatura tem sacado dinheiro a todos os países do mundo, a Portugal, a Itália, à Alemanha, a Espanha, e nunca lhes pagou nada”, continua o mais jovem do grupo enquanto Angel, de 86 anos, tenta explicar por cima dele porque vai votar em Donald Trump apesar de tudo o que o candidato tem dito sobre a imigração.

“Como se chamava o ditador de Portugal? Salazar? Achas que podia haver eleições livres no teu país quando o tirano Salazar estava no poder?”

A uma semana do dia decisivo, e com a média das sondagens a colarem Hillary Clinton a Donald Trump na decisiva luta pela vitória no estado da Florida, o voto da geração mais velha de cubanos é ainda mais importante do que em outras eleições.

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Tradicionalmente conservadores e eleitores do Partido Republicano por causa da linha mais dura contra Fidel e Raúl Castro, estes eleitores estão zangados com Barack Obama pela recente aproximação a Cuba, e exigem que os líderes cubanos saiam primeiro de cena para depois se falar nisso das relações bilaterais. As feridas do passado nunca sararam, e correm em forma de lágrimas quando Pablo Aguabella se cala para ouvir outra vez Amaury Gutiérrez: “Dime Dios si lo escuchaste llorar en la noche fría.

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Apesar de a população cubana pouco passar dos 0,5% em todos os Estados Unidos, e de representar apenas 3,5% de todos os hispânicos, 70% deles estão aqui em Miami, a maioria na zona Sul mas afastados da movimentada Ocean Drive, onde esta manifestação anti-Castro faria tanto sentido como um dia sem música, copos e festivais internacionais de twerking de dez em dez metros.

O herói desta geração cubana mais velha é o senador da Florida Marco Rubio, que tem praticamente garantida a reeleição depois da corrida falhada à nomeação como candidato a Presidente pelo Partido Republicano. Se havia dúvidas, elas foram varridas para debaixo do tapete quando Rubio propôs o seu plano alternativo ao de Barack Obama. “Eis um bom plano: Cuba organiza eleições livres, deixa de mandar pessoas para a cadeia só porque elas protestam, garante a liberdade de imprensa, corre com os russos e com os chineses e deixa de ajudar a Coreia do Norte a escapar às sanções da ONU. Depois podemos estabelecer relações com Cuba.”

Sentado do outro lado da rua, mesmo em frente ao glorioso Versailles, “o restaurante cubano mais famoso do mundo”, Luis Arias insiste em ser fotografado sentado no seu banco quase sem tinta, cigarro na mão, óculos escuros atirados para cima da cabeça, bolsa à cintura e dois pacotes com tabaco de enrolar no bolso da camisa branca. Mas primeiro, uma pergunta: “Sabes por que é que isto não liga?” Já não tem bateria, Luis, é preciso ligar à corrente para carregar, ok? Então vamos lá à fotografia: Luis, 78 anos, posa como um rei num trono sem brilho, a olhar para o infinito entre os três cartazes que trata como se fossem o seu palácio: David Rivera para a Câmara dos Representantes, Marco Rubio para o Senado e Donald Trump lá mais para cima. Todos do Partido Republicano, pois claro.

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Mas os tempos estão a mudar (estão sempre a mudar), como canta o Nobel da Literatura, e estes cubanos que fugiram à revolução, e que têm sido uma lança conservadora no Sul da Florida, estão agora ameaçados por dois lados - pelos outros imigrantes latinos e hispânicos, que os desprezam pelo estatuto especial que têm para entrar nos Estados Unidos, e pelos seus próprios descendentes, fartos de ouvir falar nos Castro e no embargo.

E nem é preciso chegar a Miami Beach para perceber isso. Ainda na Calle Ocho, pedimos uma mesa para uma pessoa no restaurante La Carreta, e Loy faz o favor de nos indicar o balcão, mesmo ao lado de um esqueleto vestido com roupa de bruxa — porque é Halloween. Uma cucaracha esmagada à entrada para a casa de banho (o primeiro restaurante que atirar a primeira pedra provavelmente vai acertar numa cucaracha), uma Macarena alta demais na MTV três, e outra empregada de mesa que num dia feliz de maquilhagem passaria bem por gata.

Numa das mesas, com bancos confortáveis e tudo, mas sem direito a um esqueleto vestido de bruxa, estão Luz e Raúl. Ela nascida na Colômbia há 27 anos, ele nascido em Cuba há 31, ambos cidadãos norte-americanos. Raúl já se chateou com os pais, e já não vai a tempo de fazer alguma coisa para resolver o problema — eles apanharam o early voting a jeito e Donald Trump soma mais dois votos.

“Fico chateado, mas depois até compreendo o que eles passaram. Nós, mais novos, queremos que as coisas se resolvam. Vai levar tempo, mas já se notam algumas mudanças e eu acredito que o Congresso vai acabar com o embargo”, diz Raúl, deixando implícito que é uma questão de tempo a dobrar — para o Congresso e para a renovação das gerações em Little Havana.

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O vento continua lá fora, tão forte que uma pessoa até jura que vê a mesma lata a correr rua abaixo cinco ou seis vezes seguidas. Pelo menos já não chove, e da Calle Ocho dos restaurantes cubanos até à Ocean Drive dos hotéis Art Deco vai o passo do tamanho que tiver de ser.

Já se avista areia de praia lá ao fundo, onde homens e mulheres jogam voleibol e mostram o corpo, ou vice-versa, e mal dobramos a esquina somos atirados para o meio de uma Albufeira desembrulhada e esticada numa única e enorme avenida com dois qulómetros. Fazemos lá ideia se alguém está bêbedo, mas este é daqueles casos em que o rigor jornalístico não é chamado para aqui — estão todos bêbedos e pronto. Quer dizer, quando há um gigante Laa-Laa dos Teletubbies a convidar pessoas para entrarem num bar, a conversa pode ficar por aqui.

Num desses bares, o Mango’s Tropical Cafe, estão cá o Batman, a Catwoman e muitos outros super-heróis (*bocejo* Halloween *bocejo*). É impossível entrar sem desequilibrar o orçamento, mas se tudo o que sobe também desce, a verdade é que quem entra no Mango’s também sai, certo Gabriela?

“Vou votar na Hillary, claro. E nem sequer é por ser mulher, embora isso também ajude. Nem quero falar sobre o Donald Trump, pode ser?”, pergunta e responde Gabriela, nascida em Miami há 24 anos, filha de cubanos e hoje mascarada de jogadora de futebol — sim, por aqui parece que isso é um disfarce de Halloween. “Os meus pais também vão votar nela, mas sim, há muitas pessoas mais velhas que votam sempre no candidato do Partido Republicano, não importa quem. Acho que está na altura de mudar e esta aproximação entre os dois países só poder ser boa, não é?”, pergunta e responde Gabriela outra vez, já a voltar-se para o bar.

É mais uma indicação do impacto das mudanças geracionais na comunidade cubana de Miami — e um sinal cada vez mais preocupante para o Partido Republicano. De acordo com a sondagem mais recente da Universidade Internacional da Florida, já deste ano, quase 70% dos cubanos do condado Miami-Dade concordam com a maior abertura entre os dois países lançada por Barack Obama e incentivada por Hillary Clinton quando foi secretária de Estado, entre 2009 e 2013; por comparação, na década de 1990, 84% dos cubanos de Miami apoiavam a manutenção do embargo a Cuba, um valor que desceu para 37% este ano.

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Alexandre Martins

Apesar das mudanças, basta recordar a batalha que foi a eleição na Florida em 2000, quando George W. Bush venceu Al Gore por apenas 536 dos mais de seis milhões de votos (inserir aqui acusações de votação viciada, desta vez por parte do Partido Democrata), e garantiu a entrada na Casa Branca.

Talvez por isso, Hillary Clinton passou por aqui no fim-de-semana, para falar durante cinco minutos no final de um concerto organizado pela sua candidatura que ficou na memória das redes sociais por outros motivos: a cantora Jennifer Lopez esteve no palco com o seu ex-marido Marc Anthony, e parece que isso é muito relevante. No anfiteatro do Bayfront Park, uma espécie de Parque da Bela Vista dos pequenitos, milhares de pessoas suportaram esta chuva de Miami que começa devagar e acaba nos maiores dilúvios de dois ou três minutos a que o mundo já assistiu, e suportaram também os apelos ao voto enquanto não chegavam os artistas principais. E definiram um novo sistema para classificar a recepção às personalidades mais destacadas: “Quem vai votar em Hillary Clinton” é um YEAAHH; “Quem quer ouvir a Jennifer Lopez” é uma casa quase a vir abaixo; e “Quem quer ouvir Marc Anthony” é temer pela própria vida com tantos gritos à nossa volta.

A importância da Florida

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