Merkel arrastou a Alemanha para o centro e nasceu um novo partido de extrema-direita

Frauke Petry está a caminho de se tornar a Le Pen alemã à frente da Alternativa para a Alemanha, que recolhe os votos dos descontentes com a política de refugiados da chanceler Angela Merkel.

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A líder do AfD, Frauke Petry, reage ao sucesso eleitoral do seu partido AFP/John MacDougall

Sete décadas depois do fim da II Guerra Mundial, um partido de extrema-direita está a tornar-se a terceira maior força política na Alemanha, com um discurso que não vai muito para além da oposição à política de portas abertas aos refugiados da chanceler Angela Merkel. Aliás, o amplo consenso dos partidos representados no Parlamento alemão em torno desta política pode ter sido o motivo do sucesso da Alternativa para a Alemanha (AfD), dizem os analistas.

"Temos de acabar com o caos no asilo" e "Vamos garantir a segurança nas fronteiras" foram alguns dos slogans com que o AfD conseguiu há uma semana resultados históricos nos estados-federados de Baden Würtemberg (15,1%), Renânia-Palatinado (12,6%) e Alta Saxónia (24,2%). "É um partido contra Merkel, contra os refugiados, contra os media, contra o euro e contra o islão. E é a favor de quê, pode-se perguntar?" comentou Stefan Kuzmany  sobre o AfD na revista Der Spiegel. As três eleições de domingo passado mostram claramente que esta formação era a única alternativa ao resto dos partidos nos boletins de voto, defendeu o jornalista.

O partido liderado desde Julho do ano passado por Frauke Petry, uma ex-empresária da indústria química de 40 anos nascida em Dresden, na Alemanha de Leste, passou a estar representado nos parlamentos regionais de oito estados federados – metade dos 16 que formam a Alemanha Federal. E as possibilidades de entrar no Parlamento em Berlim nas eleições legislativas de Outubro de 2017 crescem cada vez mais.

"Se a AfD tem o sucesso que tem hoje, é porque a CDU está muito mais à esquerda que antes. É um partido centrista, o que pode tornar-se problemático na paisagem política, pois significa que já não existe um verdadeiro partido conservador" na Alemanha, explicou ao Le Monde Nele Wissman, investigadora da Comissão de Estudos das Relações Franco-Alemãs do Instituto Francês das Relações Internacionais.

Como chegamos aqui?
Frauke Petry é um rosto feminino jovem e muitas vezes sorridente, num partido novo – com cerca de três anos – formado por homens brancos de uma certa idade. Os fãs comparam-na com a actriz norte-americana Audrey Hepburn e os adversários à líder da Frente Nacional, Marine Le Pen. Petry diz que Le Pen "é demasiado polarizadora", embora as suas estratégias se assemelhem bastante à da líder da extrema-direita francesa.
As sondagens dizem que 71% dos eleitores da AfD são homens, e uma análise mais fina revela que serão conservadores tradicionais desiludidos com o caminho para o centro, e para a aceitação do multiculturalismo, do reconhecimento da homossexualidade e outros valores da modernidade, empreendido na última década na Alemanha pelo Governo liderado pela CDU de Angela Merkel.

A Alternativa para Alemanha começou por se definir como um partido eurocéptico e anti-euro, que não conseguiu por muito pouco entrar no Parlamento nacional mas elegeu eurodeputados – está no mesmo grupo do Parlamento Europeu que os conservadores de David Cameron. Mas foi alvo de um golpe de estado interno no Verão passado, protagonizado por Petry, que desde os primeiros tempos de campanha se tinha distinguido por fazer campanha contra os imigrantes, sem se preocupar grandemente com a moeda única. O fundador, Bernd Lucke, afastou-se, dizendo que o seu partido se tinha transformado num "pântano de direita".

Hoje, a AfD é um partido sem programa oficial, embora tenha prometido apresentá-lo em Abril. Entretanto, embora Frauke Petry seja o rosto simpático e que mais vezes aparece, está longe de ter uma liderança indisputada, diz a Spiegel.

A AfD é um reflexo do que acontece na paisagem política de extrema-direita alemã, em que há desde neonazis até aos alinhados com a nova direita europeia, cristãos radicais e alinhados com Israel; há várias vozes fortes no interior deste partido. “É uma colecção de ideólogos radicais cristãos, veteranos militares arquiconservadores, professores de economia muito emproados e empresários desiludidos. É uma colecção estranha – e que se tem mostrado vulnerável a tentações radicais”, escreve a revista alemã.

A ligação Pegida
Uma coisa é óbvia: a AfD tem uma proximidade óbvia com o movimento Pegida – Europeus Patrióticos contra a Islamização do Ocidente -, que organiza manifestações anti-imigrantes e muçulmanos todas as segundas-feiras em Dresden. A AfD é uma espécie de braço político do Pegida. Vários políticos da AfD sobem ao palco para falar nas manifestações, e usam expressões semelhantes às de Lutz Bachmann, o líder do Pegida. A mais conhecida será "imprensa mentirosa" – um termo usado pelo regime nazi nos anos 1930, ao chegar ao poder na Alemanha.

A "imprensa Pinóquio", que assim é acusada de mentir, em slogans cantados nas manifestações da Pegida, servem a Lutz para recusar falar com os media. Mas, por outro lado, Lutz, que teve de se afastar durante algum tempo depois de ter sido divulgada uma foto sua mascarado de Hitler, explora notícias publicadas em qualquer meio de comunicação social, por mais incríveis ou não confirmadas que sejam, para espalhar o medo, através do Facebook, onde tem cerca de 20 mil seguidores.

A crise dos refugiados do Médio Oriente foi uma "prenda" para a AfD, e o vice-presidente do partido, Alexander Gauland – que durante muito tempo foi da CDU, o partido de Merkel – não hesitou em admiti-lo. "Pode-se dizer que esta crise foi uma dádiva. Foi-nos muito útil", afirmou este proprietário de um jornal regional de 75 anos, com ar de grande proprietário rural, na descrição do Le Monde, chamando "bárbaros" aos refugiados.

Modelo Le Pen
Frauke Petry nasceu na Alemanha de Leste mas fugiu com a família para o Ocidente aos 14 anos. É doutorada em química, tal como Merkel, mas as semelhanças param aí. Tornou-se uma empresária sem sucesso – a empresa de pneus que fundou com a sua mãe foi à falência. A sua oportunidade, como política, será tornar-se uma espécie de Marine Le Pen alemã – alguém que, face à indiferenciação dos partidos tradicionais, tem a oportunidade de ascender por oferecer um discurso diferente, ainda que a alternativa que ofereça tenha pés de barro.

"A AfD tem uma oportunidade porque todos os partidos representados no Bundestag [Parlamento] desde o Die Linke [esquerda radical] até à CSU [direita, partido bávaro aliado da CDU dos cristãos-democratas de Merkel] apoiam a política de acolhimento dos refugiados da chanceler", disse ao Le Monde o politólogo Carsten Koschmieder, da Universidade Livre de Berlim. "Se o principal assunto que preocupa os alemães são os migrantes, quem é contra a política de Merkel não tem outra alternativa para votar", conclui.

Nas últimas eleições regionais, a AfD obteve 15 mil votos de eleitores do Die Linke na Alta Saxónia, 16 mil na Turíngia, 20 mil em Brandeburgo, completa o investigador.

Tal como aconteceu com Marine Le Pen em França, a CDU e os sociais-democratas (SPD), que estão em coligação com os democratas cristãos no Governo, não sabem como reagir ao crescimento da AfD. O mesmo acontece com os Verdes, que eram até agora a terceira força política. O SPD exigiu que o partido de Petry fosse posto sob vigilância dos serviços de segurança interna; a CDU escolheu ignorá-lo oficialmente e, depois das três eleições de domingo, afirmou que manterá inalterada a sua política em relação aos refugiados. Quanto aos Verdes, recusam qualquer debate televisivo com a líder do AfD.

O resultado é que o partido de extrema-direita tem campo livre não só para a sua retórica como para definir o seu programa. Embora isto não queira dizer que a AfD tenha uma estratégia de conquista do poder – ao contrário da Frente Nacional de Marine Le Pen em França. Os líderes do partido não se entendem. Frauke Petry sonha em chegar ao Governo, diz o Le Monde. Mas Alexander Gauland defende a manutenção na oposição.

Atirar sobre os migrantes
Enquanto isso, os seus líderes continuam a ser presença assídua nos talk-shows da televisão e na Internet. A maré parece estar tanto a seu favor que até o que parecia ser um erro fatal de Frauke Petry se terá, afinal, revelado favorável: numa entrevista com um jornal regional, disse que a polícia de fronteira "devia poder usar as suas armas de fogo se fosse necessário" para impedir os refugiados de entrar na Alemanha.

É uma declaração chocante em qualquer país, mas especialmente na Alemanha – recorda os tempos do Muro de Berlim, em que a polícia disparava contra as pessoas que tentavam passar, a salto, da Alemanha de Leste para o Ocidente. Ou os assassínios em massa de judeus no Leste da Europa, durante a II Guerra Mundial. Em especial porque uma adjunta da direcção do AfD acrescentou, de forma muito útil, que os polícias deviam poder atirar "contra mulheres e crianças também". Beatrix von Storch depois pediu desculpa, disse que lhe tinha "fugido o rato do computador" quando escreveu este comentário no Facebook.

Isto aconteceu no fim de Janeiro. No entanto, a julgar pelos resultados nas últimas eleições regionais, estas declarações não terão tido um impacto negativo nos resultados.

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