Bob Dylan vendeu o seu baú de memórias

Os arquivos de Dylan são compostos por cerca de 6 mil itens que contemplam todas as fases da sua carreira. Ficarão alojados em Tulsa, no Oklahoma, a mesma cidade onde se encontra o Museu de Woody Guthrie, o primeiro herói musical e grande referência de Bob Dylan.

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Bob Dylan, o gigante da canção americana, escolheu Tulsa como centro de estudo da sua obra DR

Bob Dylan fugiu de Greenwich Village nos anos 1960 por já não suportar a atenção de que era alvo. Quando dylanólogos precoces, simples maluquinhos ou gente que conjugava as duas características, começaram a bater-lhe à porta a horas impróprias ou a vasculhar o seu caixote do lixo em busca de “respostas”, Dylan soube que era a hora de fugir do olhar público. “I was so much older then, I’m younger than that now”, poderá dizer com propriedade, cinco décadas depois. Porque vai ser possível esmiuçar e questionar, descobrir cada passo, cada rasura e cada intenção nas cartas expedidas, nas letras alteradas ou em acordes trocados. Bastará ir até Tulsa (e numa primeira fase, ser um académico reconhecido ou dylanólogo encartado), onde estará disponível um imenso acervo de Dylan.

The media got a glimpse of The Bob Dylan Archive, which has 6,000 items spanning 60 years of his career.

Uma foto publicada por Bob Dylan (@bobdylanarchive) a

Adquirido pela George Kaiser Family Foundation, criada pelo maior milionário do Oklahoma, homem liberal num estado conservador, e pela Universidade de Tulsa, que já haviam conseguido levar para a cidade os arquivos de Woody Guthrie, os cerca de seis mil itens que compõem a colecção de Dylan ficarão para a posteridade na mesma localidade que acolhe a do seu primeiro herói e grande referência e onde também encontramos uma mostra permanente de arte nativa americana. “Deixa-me feliz que os meus arquivos, reunidos ao longo de todos estes anos, tenham finalmente encontrado um lar e que sejam agrupados com as obras de Woody Guthrie e, principalmente, ao lado de todos os valiosos artefactos das Nações Nativas Americanas. Faz muito sentido para mim e é uma grande honra”, escreveu Dylan em comunicado, citado pelo New York Times.

O diário norte-americano, a quem foram abertas as portas do arquivo de Dylan, revela que este foi adquirido por uma quantia entre os 15 e os 20 milhões de dólares (entre os 13,7 e os 18,3 milhões de euros). O propósito, tal como já acontecera quando da aquisição do material de Woody Guthrie, é chamar mais gente a Tulsa e revitalizá-la com turismo cultural e com a chegada de investigadores de todo o mundo. “Portland nem sempre foi ‘fixe’, Seattle nem sempre foi ‘fixe’. Uma das formas de fazer a nossa cidade ‘fixe’ é atrair pessoas jovens e talentosas, esperando que algumas delas fiquem cá”, disse George B. Kaiser, 73 anos, ao New York Times.

Meticuloso e obsessivo

Dylan já se vinha revelando metodicamente através das Bootleg Series através das quais fomos conhecendo material musical inédito. Com elas descobrimos a evolução em palco, as canções registadas sem que a edição fosse o objectivo final, bem como o processo criativo em estúdio. Os arquivos, cuja catalogação e preparação para disponibilização pública demorará cerca de dois anos, expandem enormemente essa visão da produção artística de Dylan. Existem as curiosidades, como uma carteira com o cartão de apresentação de Otis Redding, uma nota escrita pela mão de George Harrison comentando a edição de Nashville Skyline, ou uma carta endereçada por Peter Fonda e Dennis Hopper dando conta dos avanços na definição da banda-sonora de Easy Rider. De maior interesse para os estudiosos, para além de mais gravações inéditas, áudio e vídeo, ou da correspondência trocada, por exemplo, com Allen Ginsberg, serão os cadernos manuscritos, através dos quais se revela o carácter meticuloso, no limite do obsessivo, da criatividade de Bob Dylan.

Como conta o New York Times, já era conhecida a existência de um caderno de notas onde o músico registara as letras de Blood on The Tracks, o seu álbum de 1975. Sabe-se agora que existem mais cadernos – o jornal nova-iorquino chama-lhes “uma trindade”. Enquanto isso, as páginas escritas em quartos de hotel, dada a diversidade dos locais que estes identificam, sugerem a imagem de “um auto editor obsessivo em movimento constante”. Marcas de cigarros e de café povoam as páginas que ocupavam Dylan em cada canção – o trabalho em Tangled up in blue, de Blood On The Tracks, ocupa metade de um caderno; uma canção menos conhecida como Dignity, de Oh Mercy (1989), desenvolve-se ao longo de 40 páginas.

Todo o arquivo foi sendo reunido ao longo dos anos pela equipa de Glenn Horowitz, um negociante nova-iorquino de livros raros que já estivera envolvido na venda do arquivo de Woody Guthrie à George Kaiser Family Foundation. Quando se tornou óbvio o valor de mercado do material relativo a Dylan (manuscritos de letras de canções emblemáticas chegaram a ultrapassar o milhão de dólares em leilão), Horowitz foi contratado para a equipa responsável por tudo o que envolve o músico. Segundo Horowitz, o espólio teria lugar em qualquer universidade, mas a escolha de Tulsa assegura que este seja alvo de uma atenção e destaque que não teria caso fosse destinado a uma grande biblioteca ou universidade, onde sofreria a concorrência de outros arquivos de outros gigantes da cultura.

Neste momento, ainda estão em estudo os moldes em que os documentos dos arquivos, que já têm contas oficiais de Instagram, Facebook ou Twitter, serão disponibilizados. Por agora ficarão alojados no Helmerich Center for American Research, directamente ligado à Universidade de Tulsa, com acesso restrito a académicos e “dylanólogos” reconhecidos. A George Kaiser Family Foundation não exclui, porém, a possibilidade de, próximo do Museu Guthrie, criar no futuro um espaço aberto ao público.

“Falamos de um artista cujo processo de trabalho tem sido tão confidencial quanto a sua vida pessoal”, declara Sean Wilentz, historiador da Universidade de Princeton e autor do livro Bob Dylan in America (2010). Nos últimos anos, através da autobiografia Crónicas Vol.1, do documentário No Direction Home, assinado por Martin Scorsese, e das Bootleg Series, começámos a conhecer melhor a privacidade de Dylan. Agora, quando o grande mestre da música americana da segunda metade do século conta 74 anos, vamos poder saber muito mais.

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