Jonathan Demme, cineasta eternamente curioso

O realizador de O Silêncio dos Inocentes e Stop Making Sense é alvo de retrospectiva no Lisbon & Estoril Film Festival, numa altura em que celebra 40 anos de carreira a meio caminho entre os grandes estúdios e a produção independente. E sempre ao serviço dos actores

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É a primeira vez que o nova-iorquino está no nosso país e confessa-se agradado com a escolha da extensa retrospectiva que lhe é dedicada pelo festival de Paulo Branco Pierre Teyssot/ CORBIS

“Vejo qualquer coisa a acontecer no mundo real e digo logo ‘precisamos de saber disto! Devíamos filmá-lo!’. Leio um guião do caraças e digo logo ‘ia ser fantástico fazer este filme se me derem uma oportunidade!’ Gosto de pegar numa câmara e começar a fazer qualquer coisa que pode ou não vir a dar um filme. Adoro rodar!!”

Jonathan Demme tem 71 anos e o entusiasmo de um cineasta com metade da sua idade, e isso passa perfeitamente na ligação para os escritórios da sua produtora Clinica Estetico, nos arredores de Nova Iorque. O entusiasmo que mostrou ter ao longo de meia-hora de conversa telefónica sobre uma carreira de 40 anos estende-se à sua viagem a Portugal como um dos convidados do Lisbon & Estoril Film Festival, que arranca hoje – é a primeira vez que o nova-iorquino está no nosso país e confessa-se agradado com a escolha da extensa retrospectiva que lhe é dedicada pelo festival de Paulo Branco, onde se incluem “alguns dos filmes” com os quais se sinte “mais contente”.

Não podiam faltar os seus títulos mais conhecidos – as ficções Selvagem e Perigosa, de 1986 (sáb., 7, Casino Estoril, 22h; sexta, 13, 21h45, Monumental), O Silêncio dos Inocentes , de 1990, Óscar de melhor realizador (sáb., 7. Monumental, 14h), e Filadélfia, de 1993 (dom., 8, Casino Estoril, 21h; 5ª, 12, Monumental, 14h15), e o filme-concerto dos Talking Heads Stop Making Sense, de 1984), um dos clássicos da música no cinema (sexta, 13, 14h30, Monumental). Mas o ciclo abrange igualmente o seu prolífero trabalho como documentarista – Jimmy Carter, Man from Plains (2007), sobre o ex-presidente norte-americano (sáb. 7, 21h30, Monumental), The Agronomist (2003), sobre o activista haitiano Jean Dominique (6ª, 13, 16h30, Monumental)ou I’m Carolyn Parker (2011), sobre uma sobrevivente do furacão Katrina (3ª, 10, 19h45, Monumental); filmes-concerto com Neil Young (Heart of Gold, 2006, 6ª, 13, 19h, Monumental) ou o músico italiano Enzo Avitabile (Music Life, 2012: 3ª, 10, Casa das Histórias Paula Rego, 18h; 4ª, 11, 14h30, Monumental); e até um episódio-piloto que rodou para uma série televisiva do canal AMC que não teve seguimento, Line of Sight (2014; 4ª, 11, 21h30, Monumental).

Junte-se-lhe o trabalho como produtor (por exemplo na primeira realização de Tom Hanks, Tudo por um Sonho, ou num título que vai ter ante-estreia no festival, A Canção de uma Vida, de Kate Barker-Froyland, com Anne Hathaway e Johnny Flynn), e ficamos com a imagem de um realizador generoso, atento, sempre em acção ou em movimento. “Posto dessa maneira, o entusiasmo pode ser uma coisa tão divertida e fantástica!”, ri-se. “Mas na verdade também podemos ver o entusiasmo como um capataz com um chicote que nos força a fazer coisas. Nunca tive uma estratégia a longo prazo, limitei-me a seguir o capataz!”

De certo modo, o próprio percurso da sua carreira dá-lhe razão, flutuando entre os grandes estúdios e as produções caseiras, entre a ficção de grande público e o documentário modesto, ao sabor do que descreve como “um bom olho para a história e para as personagens”. A entrada de Demme no mundo do cinema foi aliás quase casual, como assessor de imprensa em finais dos anos 1960 – e através desse emprego conheceu o lendário Roger Corman, que lhe deu as primeiras oportunidades como argumentista e realizador. Mas mesmo sem haver estratégia, existe um fio condutor que norteou o nova-iorquino ao longo dos últimos 40 anos (a sua primeira longa, A Gaiola das Tormentas, data de 1974).

“O cinema é um meio de contar histórias”, diz, “e isso é algo que fui compreendendo ao longo dos anos. Muito mais do que estar a fazer um documentário, uma ficção ou um filme-concerto, o importante é perguntar que história estamos a contar, e tentar contá-la o melhor que podemos. Não penso excessivamente nisto, mas reparei que gosto de fazer filmes que me dão a oportunidade de falar daquilo que me inspira. E quanto mais descontraído me sinto, quanto mais liberdade der aos actores, mais aprecio o facto de que enquanto realizador não estou sozinho a contar a história. Se tiver os actores certos e a equipa certa, toda a gente vai estar a trabalhar para o mesmo.”

Invenção colectiva
Isso leva àquilo que, para Demme, é central para o bom resultado de um filme: a “invenção colectiva”, conceito que cristalizou em 2008, durante O Casamento de Rachel (dom.,15, 22h, Monumental). “Saí desse filme obcecado por essa ideia, porque é isso que uma equipa de cinema faz,” diz entre risos. “Eu e o meu director de fotografia Declan Quinn tínhamos tido tanto prazer a rodar documentários que nos pareceu apropriado rodar O Casamento de Rachel como um documentário. E literalmente, foi isso que fizemos. Não pré-definimos nenhum plano, juntávamos os actores todos numa sala, eu gritava ‘acção!’, eles começavam a representar e o Declan começava a filmar. Íamos todos juntos para um exterior, e dávamos por nós todos, dos actores aos técnicos, envolvidos num acto fantástico de invenção colectiva, a inventar o trabalho do dia.”

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Os actores são a “chave” dessa invenção colectiva. “Eles têm o emprego mais mágico do mundo,” segundo Demme, “e toda a equipa de rodagem está lá para os apoiar e sustentar. Muita da minha energia enquanto realizador vai para garantir que estamos a criar um ambiente no qual eles se sintam livres, e faço questão que toda a equipa leve isso em conta. Isso ajuda a explicar porque é que tenho sido testemunha de algumas interpretações fabulosas.” Quatro delas venceram Óscares (Mary Steenburgen em Melvin e Howard, Jodie Foster e Anthony Hopkins em O Silêncio dos Inocentes e Tom Hanks em Filadélfia); duas outras foram nomeadas (Jason Robards em Melvin e Howard e Anne Hathaway em O Casamento de Rachel); e muitas outras ajudaram a colocar no mapa Melanie Griffith, Michelle Pfeiffer (Viúva… Mas Não Muito, de 1988; domingo 8, 16h45, Monumental), Oprah Winfrey, Denzel Washington, Jeff Daniels ou Ray Liotta.

Quando fala de actores, contudo, não está apenas a falar de profissionais. “Os melhores actores são os que melhor sabem contar histórias, quer sejam o Denzel ou a Meryl ou um amador sem experiência. São aqueles que têm uma compreensão fantástica da história que o filme está a contar, do modo como a sua personagem se encaixa nela.

” Os músicos que tem filmado – desde David Byrne ao colaborador recorrente Neil Young, passando por Justin Timberlake, com quem acabou de rodar um filme-concerto actualmente em pós-produção – têm aliás ideias muito precisas sobre a imagem que projectam... “Sim, sim, têm histórias para contar,” responde entusiasmado. “Quando filmo um concerto, não penso em termos de concerto; estou a filmar um grupo de personagens. Acontece que são músicos, uns cantam, outros tocam, outros ainda dançam, mas são personagens, e embora não haja um guião no sentido tradicional, há uma história que se está a desenrolar através das canções. O desafio de capturar em filme a essência dessa música é um dos momentos mais perfeitos que um cineasta pode buscar. O filme-concerto que rodei com Justin Timberlake está-me a dar imenso gozo a fazer – e é uma produção extremamente independente, sem grandes companhias ao barulho.”

Isto logo a seguir a um filme financiado por um grande estúdio, mesmo que com um orçamento razoavelmente pequeno – Ricki e os Flash, com Meryl Streep. “Como a maioria dos jovens realizadores, comecei no pequeno orçamento porque foram essas as oportunidades que me deram, mas sonhava em fazer um filme de estúdio,” explica Demme. “Depois consegui fazer um [Melvin e Howard, 1980, que venceu os Óscares de melhor actriz secundária e melhor argumento], depois fiz outro do qual fui despedido [Amor em Perigo, 1984, onde foi afastado por Goldie Hawn, actriz principal e produtora do filme]. Isso fez-me dar um passo atrás em direcção da segurança e a liberdade criativa. E consegui ir mantendo um pé nos estúdios e outro na independência. Já provei o que tinha a provar nos estúdios, e quero provar que posso continuar a ser um cineasta independente.”

O que, hoje, passa em grande parte pela televisão, até porque os grandes estúdios americanos estão cada vez menos dispostos a financiar o tipo de dramas adultos onde Demme sempre se destacou. “Ah, não penso nas coisas desse modo,” contrapõe. “Acho que já é incrivelmente difícil conseguir fazer um filme, e sempre o foi, e não acho que hoje seja mais difícil ou mais fácil.” Pega no exemplo de Ricki e os Flash: “O produtor, Marc Platt, tinha o guião e a Meryl já se tinha comprometido com o papel principal, e foram eles que vieram ter comigo. E foi porreiro fazer um filme com um orçamento maior e actores bem pagos. É com isto que qualquer realizador sonha – pessoas com quem já trabalhámos que têm um projecto novo e vêm ter connosco para sermos parte dele.” Só que isso não acontece muitas vezes, pois não? “Oh, meu Deus, não, e não posso ficar sentado à espera,” ri-se. “Filadélfia, por exemplo, aconteceu porque eu estava obcecado por tudo o que estava a acontecer com a sida, o Ron Nyswaner, o argumentista, e o meu sócio Edward Saxon também, juntámo-nos os três e decidimos fazer um filme… Mas é preciso ganhar dinheiro, e disso nunca ninguém fala!”

Daí que a televisão, onde já dirigiu alguns episódios para séries como The Killing e o tal piloto de Line of Sight, possa ser uma das saídas possíveis. Mas, no caso de Demme, nunca será uma saída apenas para cumprir calendário. “A televisão de longa duração atrai-me imenso, porque se consegue trabalhar a narrativa de um modo que não é possível nas duas horas de um filme. Gostava de fazer uma mini-série de quatro ou de seis horas, porque adorava poder fazer um filme com essa duração...”

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