Graciosa: que interesse tem esta ilhota pouco habitada e onde o tempo parece parado?

Muito interesse, escreve o leitor Camilo Sequeira, que defende, aliás, que vale bem a pena visitar esta ilha açoriana. E não apenas pelos motivos mais óbvios.

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A loja na casa-museu João Tomaz Bettencourt MM Camilo Sequeira

Sessenta e dois quilómetros quadrados de terra no meio do mar Atlântico com um norte que, se olharmos com tempo e imaginação, apenas deixará ver o pólo, lá muito longe, porque quase nada existe entre ambos.

É isto a ilha Graciosa, pelo que se justifica a pergunta: que interesse tem esta ilhota pouco habitada e onde o tempo parece parado? Claro que tem muita paisagem, beleza natural, o mar e os trilhos que chamam um tipo particular de viajantes, mas também tem interesses para os curiosos de tudo. Por exemplo, tem o que não existe noutro qualquer lugar do país: reservatórios de águas pluviais que deram de beber aos ilhéus durante anos, escavados e cobertos com várias cúpulas cuja arquitectura lembra catedrais subterrâneas (pelo menos o visitável, chamado do Atalho, funcional de 1866 a 2010 e com capacidade para 1800 metros cúbicos de água).

E tem gente imaginativa, pouco dada a abandonar o sossego local, mas capaz de preservar memórias recolhendo o que outros, pela emigração ou pela modernidade, vêem como lixo sem perceberem que estão destruindo o que foi vida de muita gente em tempos passados. Como é o caso de Maria José da Silva Quadros, co-autora (com a académica Maria da Graça Borges Castanho) de O Património Oral da Ilha Graciosa, recolha de experiências de vida registadas com personagens reais, que faz(em) neste livro um retrato vivo de um povo cuja memória na primeira pessoa se iria perder.

Mas foi ainda mais longe nesta sua vocação etnográfica autodidacta. Com uma dedicação apaixonada pela preservação do que é simbólico do viver na ilha, recuperou e tem mantido há anos, em contínuo crescimento, a loja de um grossista do princípio do século XX e, sobre esta, a residência do mesmo com objectos da casa e de outras que se vão despojando de velharias que ela recolhe, limpa e recupera para as distribuir pelo espaço do que é hoje a casa-museu João Tomaz Bettencourt. Claro que não é caso único.

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MM Camilo Sequeira

Há no país, felizmente, muita gente que por dom natural ou particular sensibilidade social, protege e guarda com fins potencialmente expositivos o que “sentem” como valor a não desperdiçar e que a seu tempo poderá ser objecto de investigação pela ciência. Ciência que eles não possuem mas sabem ter utilidade para os outros, os muitos outros que agora os acham simplesmente extravagantes.

O singular desta vivência é que revela o empreendedorismo, a sensibilidade social, de uma pessoa sem formação que apenas percebe que recolher, guardar e expor passado é a base sobre que se constroem os saberes que, de mãos dadas uns com os outros, fazem a História da nossa vida relacional.

Porque as recolhas são provas objectivas desta vida e da estratificação social na ilha, tanto pelo tipo e quantidade de produtos de consumo quotidiano ou de materiais para vestuário e decoração, como pela sua localização espacial na loja. Com os produtos de melhor qualidade e por isso menos vendidos porque só os ricos, que eram poucos, os podiam adquirir, colocados nas prateleiras mais altas que eram, por este motivo, acedidas menos vezes.

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A escada de caracol do Farol da Ponta da Barca MM Camilo Sequeira

Impressionam-me sempre estes fazedores de memória que, nascidos desvalidos, se colocam no caminho da história apenas por vocação sensorial. E que, demasiadas vezes, são considerados como pessoas exóticas, bizarras, não se lhes reconhecendo o imenso mérito que possuem, desvalorizando-se o que de bom conseguem oferecer à interpretação das diversas formas de se viver. Uns mais isolados, outros menos, mas todos representando um particular, um específico, dos muitos e tão diversos tipos de existência do passado português que nos permitem dizer como somos um “colectivo”.

E é singular que os Açores tenham uma publicação promotora da ilha que salienta a beleza dos seus trilhos pedestres, o espantoso mundo aquático que o mergulhar nas suas águas revela, a recordação flamenga que os típicos moinhos são, as maravilhas geológicas da Furna do Enxofre e de outras próximas de menor dimensão, os ilhéus reserva da biosfera e até não esquece as dulcíssimas queijadas e a produção vinícola mas que ignora quer este museu singular, quer a originalidade dos reservatórios que se mantiveram funcionais até ao século XXI.

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Furna do Enxofre MM Camilo Sequeira

E ainda como curiosidade invulgar, que talvez só o seja para os mais curiosos de tudo, há nesta ilha Graciosa outra beleza natural, muito original, que merece ser vista, a fumarola de Grotas, que está num paredão construído pelo homem e onde o engenho deste deixou um buraco para se ver, sentir, cheirar, o que bem lá nas profundezas é parte de um vulcão.

Por isso digo: vale bem a pena visitar a ilha Graciosa.

M.M. Camilo Sequeira

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Ilhéu da Baleia, que faz parte da área protegida MM Camilo Sequeira
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