Uma canção contra o destino

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O novo romance de Lídia Jorge completa o arco iniciado há 34 anos com O Dia dos Prodígios — é como se a escritora viesse agora fazer o balanço de uma promessa, e responder às perguntas colocadas pela sua própria obra Enric Vives-Rubio

É um romance empurrado pela tristeza que Lídia Jorge sente ao ver o país tombar. Mas também sobre a esperança de que brote “uma nova canção no mundo”. Os Memoráveis quer falar aos jovens que têm nas mãos “a renovação”

Os Memoráveis tem como narradora Ana Maria Machado, uma jovem jornalista portuguesa que trabalha no canal televisivo CBS, em Washington. Em 2004, na casa de um ex-embaixador dos Estados Unidos em Portugal, é-lhe feito um desafio: regressar a Lisboa e construir um documentário revisitando a Revolução dos Cravos por um ângulo luminoso. Juntamente com dois antigos colegas — Margarida Lota e Miguel Ângelo —, Ana Maria entrevista algumas das pessoas que puseram em marcha o 25 de Abril. São personagens inspiradas em figuras históricas, mas não deixam de ser literárias. Cabe ao leitor identificá-las e estabelecer correspondências.

Nesta entrevista, a escritora algarvia de 67 anos — considerada no ano passado pela revista francesa Le Magazine Littéraire uma das dez grandes vozes da literatura estrangeira — fala da importância de encontrarmos uma nova canção, uma nova senha para transformar Portugal. “Não se aguenta indefinidamente a hipocrisia. E ela está durando demasiado. Está testando a nossa resistência, a resistência da gente jovem”, diz. Se este livro chegar ao coração de pelo menos alguns jovens, cinco que sejam, Lídia Jorge já se dá por satisfeita.



Disse que não queria que Os Memoráveis fosse visto como um livro-efeméride. Mas o facto é que o romance é publicado na altura em que assinalamos os 40 anos do 25 de Abril. Porque decidiu publicá-lo agora? Não tem medo desse rótulo?

Tenho, tenho medo. É impossível não imaginar essa espécie de colagem, que me desgosta. Mas por outro lado este romance foi escrito em sintonia com um tempo. O facto de eu perceber que muita gente estava a questionar as mesmas coisas que eu deu-me uma espécie de humildade. Não me importo que o meu livro vá numa espécie de enxurrada de acontecimentos. Porque esta é uma forma de fazer uma homenagem a uma coisa que eu admiro muito, uma espécie de rasgão no tempo que aconteceu um dia, no passado. E que ainda hoje continua a ser misterioso, questionável, nós ainda vamos buscar lá uma semente de grande esperança. Eu queria espetar uma bandeira de esperança ao escrever este livro. Donde a terceira e última parte dele...

...a que chama de Argumento.

Sim. Donde o Argumento ser uma montagem irreal [dos acontecimentos do 25 de Abril de 1974]. Não sou capaz de fazer outra oferta. Escrevi este livro sem circunstância literária. Escrevi-o empurrada por uma espécie de necessidade de responder a um livro que escrevi há muitos anos, O Dia dos Prodígios. Ao longo destes anos, aprendi a olhar para aquilo que era uma esperança sem limites com um outro olhar. Achei que poderia escrever sobre isso, sobre o correr do tempo, o que o tempo faz à esperança e como uma esperança pode desencadear outra. Sobre quando nós pensamos que a esperança está morrendo e ela desencadeia respostas novas. Escrevi-o com a ideia de que pode haver uma nova canção no mundo, embora também já tenha dito que este livro foi empurrado pela minha tristeza pelo que está a acontecer ao país.

A crise económica?

Sim, a crise económica. Mas que não se confundam as duas coisas. Uma é o sentimento que me empurrou até ao livro — a tristeza —, outra é aquilo que escrevi.

Fez referência a O Dia dos Prodígios, o seu primeiro romance, publicado em 1980. Quem acompanha a sua obra tem impressão de que, com Os Memoráveis, há um arco que se completa. O que mudou nestes 34 anos?

Mudou sobretudo o olhar. Enquanto O Dia dos Prodígios é uma observação a partir de um microcosmos, de uma aldeia [Vilamaninhos], em Os Memoráveis o olhar é exterior. É a partir do mundo para o país. Mudou também a consciência de uma geração. O Dia dos Prodígios é um livro antropologicamente marcado pelo lugar, este tem um olhar abrangente, de fora. É por isso que a figura que dá o testemunho [a narradora, Ana Maria Machado, uma repórter da CBS em Washington] tem uma experiência de outras zonas, de conflitos sangrentos; viveu tristezas e alegrias longe. Pode portanto observar e perceber se aquilo que aconteceu — e que em O Dia dos Prodígios aparece como um prodígio — ainda é um prodígio ou não. É isso que lhe dizem no estrangeiro: houve naquele país um prodígio, vai ver o que aconteceu. No 25 de Abril, a história maléfica ficou interrompida e parece que durante 24 horas todos os anjos ajudaram. A figura vem ver o que sobeja disso. É uma grande mudança em relação àquilo que era a promessa em O Dia dos Prodígios. Em Os Memoráveis, há o balanço da promessa. Há também algo em comum. Nos dois romances há uma tentativa de retrato do povo. E o retrato é muito semelhante. Se algo não mudou está nessa base antropológica e cultural funda que é um contraste muito grande entre a força de sonhar e a debilidade do agir, organizar e concretizar. Aquilo que as figuras de O Dia dos Prodígios diziam há 30 e muitos anos, estas figuras demonstram. Os próprios intérpretes daquele dia exilaram-se na democracia. Deixaram-se vencer por lados menores da democracia.

É curioso que, em Os Memoráveis, são os estrangeiros que nos obrigam a olhar para a nossa História. É preciso ser alguém de fora — neste caso um produtor do canal televisivo CBS e um ex-embaixador dos EUA em Portugal — a pedir-nos para olhar para o que sobrou desse momento de excepção no passado português. Não temos vontade de olhar para nós mesmos?

Nós somos profundamente auto-punitivos. Estamos permanentemente a desmontar a alegria que nos acontece. Em geral os outros avaliam-nos melhor do que nós próprios. No caso concreto da importância da nossa revolução, de facto no exterior avalia-se com mais frequência como uma coisa positiva. Talvez porque no exterior não se saiba do que veio a seguir. Não conhecem a história da nossa democracia, que é uma democracia muito imperfeita. Mas reconhecem aquele marco extraordinário. Nós hoje não somos pioneiros, somos apenas obedientes. Mas há 40 anos houve algo que fez de nós pioneiros. E isto é muito bom. Para termos algo assim tão importante em Portugal teríamos de voltar aos séculos XV e XVI. Então, para o nosso conforto, acho que é importante percebemos que aqui em Portugal aconteceu uma coisa boa.

Entrevistou várias pessoas que tiveram um papel activo no 25 de Abril — Vasco Lourenço ou Otelo Saraiva de Carvalho, por exemplo. Encontrou o ressentimento que transpira do seu livro?

Encontrei ressentimento em relação à democracia. Todos eles tinham utopias diferentes, mas tinham fortes utopias. Eram pessoas mais de utopia do que de sabedoria histórica. Imaginavam que o país iria desenvolver-se, que a partilha iria ser muito activa. Todos achavam que o subdesenvolvimento iria ser facilmente ultrapassado. Acho que estão ressentidos não por si próprios ou pelas suas famílias — eu não falei com todos, mas falei com muitos, muitos mais do que aqueles que aparecem como figuras no livro. Estão ressentidos pelo que não foi feito pelo povo. Uma espécie de traição ao longo da democracia que permitiu criar ninhos de impedimento. Eles interpretam isso muito bem ao dizer que prepararam a revolução mas não o dia seguinte. Há pessoas que olham para o PREC como um período trágico, mas foi o menos trágico possível. Houve pessoas maltratadas. Houve dores enormes. É impossível desmontar uma ditadura de 40 anos sem dor. Muitos deles avaliam o dia seguinte como o menor estrago possível. A incorporação de todos naquele momento era quase impossível. Claro que há outra interpretação, que também está no livro, que é a de que não houve sangue suficiente. A de que é um idealismo imaginar que se dá uma mudança sem uma espécie de sangria, da mesma forma que não se pode tirar um tumor sem uma excisão. Um dos poetas que aparecem no livro é dessa opinião: para que a revolução tivesse abalado os pilares mentais, teria de ter ido mais além. Mas de facto o que nós apreciamos nesta revolução é o lado pacífico.

O seu livro quer desenterrar a pureza desse momento de excepção em Portugal?

Sim, quer desenterrar a pureza e celebrá-la como força. Acho que vale a pena pensarmos que cinco mil rapazes — e sobretudo os 50 que estiveram à frente — estiveram envolvidos em situações que poderiam não ter regresso. Com uma inocência de adolescentes. O adolescente que pensa que é mais forte do que a natureza e que alguma coisa dele sobreviverá mesmo que morra. Como nas palavras do Salgueiro Maia quando põe a granada no bolso e diz “eu far-me-ia vítima e em nome da vítima os outros iriam atrás”. É uma frase lindíssima e que pode ajudar milhões de adolescentes a terem coragem, hombridade, altivez. A amarem coisas para além de si mesmos. É isto que nos torna homens — talvez não heróis, mas homens. O nosso nome pode não ficar em parte nenhuma, podemos não ter qualquer estátua, mas é assim que nos tornamos gente grande. Essa também foi uma das razões pelas quais achei que tinha de escrever este livro. Porque se não o fizesse seria uma falha comigo mesma. Sou daqueles escritores que acreditam que a literatura é um sistema impuro, ou seja, um sistema que tendo um fim em si próprio acaba por desencadear muitos outros fins. Era algo essencial e que cabia na minha casa literária. E eu já estou em idade de escrever só sobre o que é essencial. Tenho 67 anos, já não tenho nada a perder, e talvez nada a ganhar. Escrevi portanto sobre a essência das coisas em que acredito.

A imagem da juventude aparece tripartida neste livro. São três jovens, com comportamentos e feitios diferentes, a representar a geração contemporânea e a tentar colar os cacos do 25 de Abril. Esta decisão foi uma estratégia para não tratar a geração de hoje de forma monolítica?

Eu agora percebo isso e até parece uma arquitectura lógica, mas não foi um propósito esquemático. Eu precisava de três olhares. Aquela que desde criança sabia tudo, mas que tinha querido esquecer. A Machadinha [Ana Maria Machado] sabia quem eram os homens [do 25 Abril]. Era importante ter ali alguém que sabia muito sobre eles mas que fingia que não estava ali, um olhar único de quem sabe mas está recuado. Também precisava de um rosto que se encantasse com aquelas figuras. Que olhasse para eles não como seres do passado, mas sim como seres que desapareceram e que vêm do futuro, tal como eu os vejo. A Margarida Lota, impetuosa e votada a deslumbrar-se, era fundamental para desencadear a confiança destas figuras. E precisava ainda de um terceiro olhar, o do reticente [Miguel Ângelo], um olhar desconfiado — como eu própria, ao longo dos anos, fui ficando desconfiada. Estes jovens são portanto três olhares meus que eu deleguei em figuras [literárias]. São muito mais isso do que um esquema.

A geração actual é muitas vezes descrita como incapaz de reagir, muito dependente de ferramentas digitais; uma geração que vai embora quando as coisas não estão bem. Mas também é a geração que foi para a rua e fez uma manifestação com 500 mil pessoas no 12 de Março de 2011. No seu livro, os homens de Abril parecem ver os jovens como ingénuos, incapazes de compreender o que aconteceu. Mas são os jovens que vêm colar os cacos do 25 de Abril.

Vamos lá ver. Talvez eu não me tenha feito entender. Eu fiz o esforço de sair de mim e colocar-me dentro daqueles que penso que são uma nova geração. Mas nós não conseguimos sair daquilo que somos. Eu fiz o esforço e tive quem me ajudasse. Um jovem a certa altura até me disse: “Atenção, os jovens de hoje não pensam assim.” Houve a preocupação de não trair a verdade dessas figuras. Eles [os jovens contemporâneos] nunca são maltratados por ninguém, mas são tratados como sendo incapazes de aceder à verdade do que aconteceu. Mas, como diz, são eles que são capazes de reunir os cacos. Há mesmo uma [a personagem Margarida Lota] que diz: é desta geração [de 1974] e não dos [homens] actuais que eu quero ter um filho. Eles colam os cacos mas estão em confronto com valores da sua própria geração. São páginas em que as duas gerações se encontram. Não há desencontro.

Quis chegar ao coração desta nova geração?

Quis, quis chegar ao coração dos jovens. Entendo-me bem com eles e acho que os compreendo. Não é bem entender... eu vejo-os no tempo, como meus filhos. Tenho essa facilidade. Mas precisei da ajuda de um olhar jovem. E cheguei a emendar coisas no livro.

Como por exemplo?

A [personagem da] Margarida Lota era mais superficial. Mais infantil. O seu entusiasmo era mais epidérmico. Chamaram-me a atenção: a pessoa que tinha sido a melhor aluna do curso não podia ser saltitante. Eu teria de lhe dar uma dimensão, uma densidade diferente daquela que lhe estava a dar. Eu própria fiquei feliz com ela quando isso aconteceu. Faltava ali essa interlocutora, que no fundo significasse o meu próprio entusiasmo. A Margarida é entusiasta mas não é estúpida, não é pueril. Isto de facto foi uma grande ajuda.

Esta nova geração tem formação e ferramentas que as gerações anteriores não tiveram. O que a impede de levantar-se contra esta ditadura económica?

Impede-a a própria civilização que foi criada. Os meios são tantos que se anulam. Os nossos inimigos não estão próximos. A fonte da perturbação não tem rosto. Quando tudo é comunicação e iluminação, há um mundo de penumbra. O jovem que é hoje corajoso é corajoso no seu dia-a-dia, enfrentando poderes pequenos. Mas o que faz um jovem corajoso hoje? Como é revolucionário um jovem corajoso hoje? Há o sonho de que haja uma nova senha, uma nova canção. Há uma figura que diz: ela há-de acontecer e tocará [por via dos telemóveis] na algibeira de toda a gente, juntará o Oriente e o Ocidente. Eu tenho a ideia de que as jovens gerações não sabem muito bem como fazer eclodir. Mas o [Julien] Assange, por exemplo, fez eclodir uma bomba.

Estava precisamente a pensar no Julian Assange e no Edward Snowden.

Exactamente. Eles são revolucionários no seu tempo. Com os defeitos que podem ter, fizeram uma revolução para a transparência.

Mas ainda não há uma banda sonora para isso. Uma música que sirva de senha para a mudança.

Não há, não há. Mas de repente pode haver. Não se aguenta indefinidamente a hipocrisia. E ela está durando demasiado. Está testando a nossa resistência, a resistência da gente jovem. Há um medo que amarra os jovens, que são afinal os destinatários das nossas palavras. O medo de que havendo um conflito ninguém o possa parar e nós não saibamos onde vai terminar.

Disse-me há pouco que quer chegar ao coração desta geração. Com que mensagem?

É a mensagem de que têm na sua mão a renovação e o destino. Aquilo que aconteceu à minha geração foi a luta contra o destino. Não aceitámos o destino. Essa não aceitação foi incorporada por estas pessoas [que fizeram o 25 de Abril], e é por isso que nós gostamos delas. Porque apesar dos erros foram capazes de não aceitar o destino. Os espanhóis têm uma palavra de que gosto muito: inquietude. A nós falta-nos inquietude. Falta aos jovens essa inquietação de não aceitar o pouco que lhes é dado. Desacomodarem-se. Se para cinco ou seis jovens este livro servir para dar essa mensagem, dou-me por satisfeita.

 

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