Deus e o diabo na rua

Foto
Daryan Dornelles

Sete criadores brasileiros, a solo ou em colectivos, falam das manifestações, e de como a arte responde à rua.

Ava Rocha e o Baile Primitivo

Quarta-feira antes do Carnaval, 26 de Fevereiro. Noite de Flamengo no Maracanã e de Baile Primitivo na Lapa. Não dá para conciliar: quem sai do estádio entre 40 mil fiéis da tribo rubro-e-negra demora hora e meia a chegar à Lapa, se sobreviver ao metro. A Lapa é aquele bairro onde milhares de cariocas bebem de pé, entre corpos semi-nus encostados às portas, viciados em crack ou sem-abrigo. Um bruá cataclísmico à uma e meia da manhã, hora a que, no primeiro piso do bar Multifoco, o Baile termina, com a banda a transbordar do palco, pesadamente fantasiada. Perucas de fitas e mascarilha, vestidos de pl? ?stico e renda, farrapos de faca na liga, sem liga mesmo: cangaceiros medievais no derradeiro Carnaval da Terra. O Rio de Janeiro é o sintoma tropical do fim? Pelo sim, pelo não, a banda joga tudo, deuses e diabos, terra em transe, como num filme de Glauber Rocha. A morena mais exuberante é filha dele, chama-se Ava.

Ava Rocha, 34 anos, cantora, compositora, autora das fantasias-cenário que se prolongam pelo palco em cacos, restos, fitas; Negro Leo, 30 anos, músico, compositor, autor da ideia; Marcos Lacerda, 32 anos, sociólogo, pesquisador de sambas antigos, redactor do manifesto. Os três encabeçam o colectivo de 44 nomes na página de Facebook que anunciou o Baile Primitivo, em Janeiro.

A proposta, escreviam então, era “fazer um carnaval político” com “mascarados, diabinhos, zé pereiras, capoeiras, cordões, como que formando um bloco de resistência popular aos mandos e desmandos do Capital e da modernização conservadora brasileira”. Isto recuperando canções da “época de ouro”, quando ainda não fora eliminado tudo o que “soava como dissonante, heterogéneo, inclassificável e até mesmo ameaçador para a ordem pública e para o ‘bom gosto’ do Carnaval oficial”.

No Facebook do hiperactivo Marcos abundam exemplos, como estes versos de 1919, assinados por Manuel Bandeira:



E a lua verte como uma âmbula

O filtro erótico que assombra...

Vem, meu Pierrot, ó minha sombra

Cocainômana e noctâmbula!...




Já o manifesto é uma guerrilha com vários abraços, do anarquismo à fé milenarista. “Com livros, com fuzil e sem Coca-Cola: por que não? O carnaval é a explicitação de uma sociedade desigual, violenta, desesperada, rebelde e potencialmente revolucionária. O avesso do pacto nacional de conciliação de classes.” Referências? Agostinho da Silva, Darcy Ribeiro, não-alinhados, neopaganistas, zapatistas, marcha das vadias, pink bloc, black bloc, porque “vândalo é o Estado e o Mercado”. Em nome de quem? Seringueiros, ribeirinhos, índios, operários. Não se trata de “realismo socialista, realismo capitalista, nacionalismo fantasioso, exotismo ilegível, ‘arte pela arte’ burguesa” mas de “intelectuais e artistas” serem os “últimos soldados da guerra-fria”. O desfecho é este: “Uma bandeira negra e vermelha tremula nas ruas do Brasil. Da ditadura democrática do povo. O terror revolucionário. A grande onda da liberdade de amar. Eu não nasci pra morrer.”

Às duas da manhã as fantasias estão em sacos, a banda desce para a rua, alguém acende um baseado. Marcos mora a uns quarteirões daqui, na Glória. Se parar num boteco não vai parar de falar, desde ocupações de casas ao Quinto Império, comprovando que o espectro político é mais curvo do que recto. É mesmo fã de Agostinho da Silva, de quem aliás Glauber foi discípulo.

Ava e Negro Leo, mulher e marido, pais de uma bebé, moram em Botafogo. Ele está radiante com os três convidados da noite, um contrabaixista, um percussionista nigeriano e um saxofonista parceiro de Marc Ribot e Arto Linsay. Ela está radiante com as fantasias, bom preparativo para o Baile enfim na rua, Quarta-feira de Cinzas, algures entre a Lapa e as ruínas do que tem sido demolido para a construção do Porto Maravilha, projecto-emblema do prefeito Eduardo Paes, no corre-corre para Copa e Olimpíada.

“No Baile Primitivo estou encontrando espaço para exercer um posicionamento político”, resume Ava, numa primeira conversa com o Ípsilon, depois de a repórter ter visto a estreia do Baile. “Estes sambas antigos estão vivos: o pagamento do bonde, a polícia no morro, a ditadura travestida.” Foi com o pagamento dos autocarros que o actual levantamento de rua começou, em Junho de 2013, potenciado depois pela repressão da Polícia Militar. “A gente não superou a ditadura. O Brasil avançou na superação da miséria, mas não resolveu muitas questões. Para mim, é o povo contra as diversas máfias: polícia, partidos políticos. A gente vive ecos de escravidão.”

Perante isso, o Baile propõe-se como um corpo colectivo, “a construção de um coro”, com o auge na rua. “Vamos fazer um carro alegórico que seja um terreiro multimídia, político, onde a gente evoque entidades, bandeiras de luta.” O espírito, diz Ava, “é de mutirão”, ou seja, mobilização conjunta. “Eu lanço uma ideia e cinco pessoas desenvolvem. E a ideia é permanecer com esse Carnaval fora de época ao longo de 2014, na Copa, na eleição [presidencial, em Outubro]. Estamos em plena efervescência criativa e política, totalmente tomados pelo desejo de transformação, de gozo. A gente vai unindo as potências de cada um, não quer reproduzir velhas formas de fazer política, está procurando o nosso lugar.”

Como foi mãe no fim de 2012, Ava participou apenas numa manifestação. “Passei esse ano [de 2013] amamentando a minha filha, observando, pensando, militando do meu jeito, me preparando para uma actuação maior em 2014.” Não em manifestações. “Não me sinto potente para estar exercendo esse tipo de confronto. O meu desejo é ir para a rua com o Baile. A minha forma de fazer política é no teatro, na música, no cinema.”

A sua conexão com o cinema do pai é “total”, diz. “O Glauber é uma grande inspiração. Ele, a obra, o pensamento, estão sempre comigo. Não passa por reproduzir o que ele fez, mas por forças de natureza desconhecida, espirituais, que movem a gente. O Brasil é um grande terreiro, sexual, político, estético, cultural. E o Baile é uma grande macumba para tudo o que a gente precisa de gritar, de reconectar. Ao mesmo tempo, é um terreno de pensamento, conceptual. Quais as questões que a gente precisa afiar? O teatro [político] do [Augusto] Boal e o teatro [dionisíaco] do Zé Celso [Oficina] se encontram no que estamos fazendo, tal como os sambas dos anos 30. Tudo isso está presente quando a gente fala que ‘a rua não ‘tá sopa, é fogo na roupa, é caveira no poste’. Eu me encontro politicamente nessas forças. É onde me alimento e consigo me armar. A cada um sua coroa.”





Veronica Stigger, Cultura e Barbárie

“Eu vou morrer. Mas não vou morrer debaixo da ponte. Não vou morrer debaixo da ponte de boca calada.” Eis a primeira página de Delírio de Damasco, um livrinho em que Veronica Stigger colhe frases, falas, fragmentos da rua, como uma espécie de “arqueologia da linguagem do presente”. Não é o seu título mais conhecido, não se encontra facilmente nas livrarias como o romance Opisanie Swiata, que ganhou o Prémio Fundação Biblioteca Nacional em 2013 e está publicado pela elegante Cosac Naify. Mas é um dos trabalhos que ela fez no colectivo Cultura e Barbárie.

Sediado enquanto editora em Santa Catarina, Sul do Brasil, o grupo tem o seu próprio “panfleto político-cultural” on-line, o Sopro, e integra, por exemplo, o editor Alexandre Nodari (Florianópolis), o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (Rio de Janeiro), o poeta visual Andre Vallias (Rio de Janeiro) e o jornalista e poeta Eduardo Sterzi, marido de Veronica (como ela, gaúcho, radicado em São Paulo), todos comentadores activos no Facebook ou no Twitter.

“Tudo o que faço é político”, diz Veronica, 41 anos, que além de escritora é crítica de arte. “Toda a arte é política, pelo simples facto de estar inserida na polis. Não é por ser conformista que deixa de ser política, aí é política de forma conformista.” Lançado meses antes das manifestações de Junho de 2013, Delírio de Damasco, o tal livrinho com frases colhidas, já era “uma catarse em relação à violência que se vive quotidianamente no Brasil”. Surgiu de uma intervenção que Veronica foi convidada a fazer nos tapumes de uma unidade do SESC, importante rede de equipamentos e projectos culturais. “Propus cartazes com trechos de conversas, como se devolvesse à rua o que eu ouvira. Umas têm uma pegada mais forte, como esta que o meu marido ouviu: ‘Coitados dos índios! Viviam em paz. Chegaram os seres humanos e mataram todos.’ Mesmo essa pessoa que tem compaixão retira a humanidade dos índios.”

Ao fixar estas frases, levou “para o âmbito público aquilo que as pessoas dizem num âmbito privado”. O resultado é “como se cada um pudesse ter dito aquela frase”. Algumas foram rejeitadas pelo SESC e o livro recuperou-as, reunindo um conjunto bem mais alargado. Quando começou o levantamento de 2013, Veronica passeou com uma das frases (“Não pode. Por que não pode? Porque não pode”). Foi a várias manifestações, como já tinha ido à Marcha da Maconha ou a protestos contra o despejo de Pinheirinho, um terreno abandonado onde crescera uma comunidade de milhares de pessoas.

Ainda não escreveu sobre nada disto. “Não sei como transpor para a literatura. Não é interessante em estado bruto.” Mas talvez haja “algo desse espírito” no livro de contos Sombrio Ermo Turvo, em que está a trabalhar. “São narrativas em que alguma coisa está se armando e não se sabe bem o quê.”

No dia em que o Ípsilon falou com Veronica, o músico, poeta e artista plástico Arnaldo Antunes, 53 anos, aparecia num jornal de São Paulo a dizer que não entendia bem as manifestações, que tudo ficara confuso. Os nomes mais conhecidos da cultura brasileira têm estado bastante quietos, por exemplo, Chico Buarque, 69 anos, que deu a cara por Dilma, agora alvo da rua.

Colunista semanal do Globo, Caetano Veloso, 71 anos, começou por falar das manifestações a partir da sua janela, e do que amigos contavam. Acabou por ir ao espaço da Mídia Ninja, colectivo de cobertura dos protestos, e deixou-se fotografar com um pano preto na cara, à maneira da táctica black bloc, um aggiornamento que ajudou os Ninja, num momento em que estavam sob crítica. Mas para quem o lê, a impressão continua a ser de distância: alguém que está fora.

Entretanto, em 2014 não só há Copa e eleição como passam 50 anos sobre o golpe militar que instalou a ditadura. O Cultura e Barbárie quer marcar o ano com a questão indígena: perda de terra e de um modo de vida. “Estamos tentando articular um debate sobre este extermínio para 19 de Abril, Dia Nacional do Índio”, diz Veronica. “Palestras e actividades em vários pontos do Brasil e uma marcha que seria a refundação simbólica de Piratininga, nome original de São Paulo.”

Um dos nomes no colectivo, Andre Vallias, é autor de um poema-instalação com 223 nomes de tribos: Totem. Eco do momento em que muita gente nas redes sociais tomou o nome Guarani-Kaiowá, tribo do Matogrosso do Sul ameaçada pelos grandes proprietários. Ou de como uma elite urbana branca absorveu o conflito indígena no levantamento que começou em 2013. Até hoje o Facebook está cheio de nomes assim, Fulano de Tal Guarani-Kaiowá.





BNegão e o rap que já falava disto

Mas não apenas uma elite urbana branca. Um dos principais rappers brasileiros, BNegão, 40 anos, carioca, é Bernardo Guarani-Kaiowá Negron no Facebook. E em 2012 ele já falava:



Entre caos e o caô, entre a inércia e o terror

Entre comandos, políticos, polícias e milícias

Em campo aberto, ou num mar de concreto

A hipnose chega perto do grau 9... numa escala 10

O mundo inteiro a seus pés

A história até o final ainda contém várias surpresas

Para o bem e para o mal (que tal?)

Uma por uma, as verdades vêm à tona,

olha que beleza:

tijolo por tijolo, máscara por máscara...

Do estilingue vai a pedra... da banana vai a casca, eu falei



ÉA!



É a mensagem na garrafa, eu falei




“As coisas estão sendo faladas há muito tempo”, diz BNegão. “Eu estive em barricadas na USP [Universidade de São Paulo] antes de tudo isto. Achei lindo agora, dei força total, mas estou dentro desse activismo desde sempre. Meus pais foram activistas contra a ditadura. Já tive helicóptero da Polícia Militar na janela da minha casa.”

Projectos novos, que ecoem as actuais manifestações, há um: participar com letra numa canção dos mineiros Skank. “O nome da música é Multidão, fala do que tem acontecido.” Do ponto de vista deste rapper, nada de novo, portanto.

“O meu trabalho é continuar a fazer o que faço. Estou com a galera do MPL [Movimento Passe Livre, os estudantes que iniciaram os protestos] desde que foi fundado. As primeiras manifestações deles foram nos meus shows em São Paulo. Sempre que fizeram vídeos me pediram para eu liberar música.” Gargalhada grave: “Então não preciso de fazer a música [de agora] porque ela já está feita. É mais do que a manifestação, é a vida. Estamos falando de 514 anos de loucura no Brasil. Está estourando hoje mas não é uma coisa específica deste governo. A parada é muito mais profunda. O povo brasileiro tem 514 anos sendo amassado. O Brasil é um dos lugares mais caros do mundo e tem um serviço péssimo em tudo. Você tem dois, três empregos para sobreviver e paga caro pra caramba um serviço que não funciona. E tem uma hora em que a panela de pressão estoura.”

É um título seu. Já era: O mundo (panela de pressão).





Kiko Dinucci, Passo Torto, Metá Metá

Paulistano, sambista do asfalto e desenhista, Kiko Dinucci, 36 anos, também já estava lá antes de a coisa começar. Vai lançar na segunda metade de 2014 “um disco de vinhetas, letras curtas, com uma personagem vagando” pela cidade. As canções estão compostas há dois anos, o tom será de agora. “Tem muita angústia, mostra o lado doente de São Paulo. Isso já estava no Passo Eléctrico, um disco que lancei [com a banda Passo Torto] no dia da manifestação mais violenta. Muita gente saiu da manifestação para o show, correndo da polícia, de bomba, de gás. Chegou lá e a gente estava cantando A cidade cai.”



Vai saber como é que é?Cair?A cidade inteira até?Sumir?A cidade inteira cai?Construção

Demoliram até meu coração

Procurei

Mas a vida que vivi

Não vive lá


“Então tudo isso dialoga com o que está acontecendo, porque a cidade não é um cartão-postal.” Kiko também evoca uma panela de pressão. “O Brasil inteiro é essa panela. Talvez falte isso na música do Rio de Janeiro. Lógico que os novos compositores, Negro Leo, Ava Rocha, estão falando de um Rio mais frenético, com essa tensão, mas o que a gente conhece é a cidade que encanta, a beleza.” São Paulo é outra parada. “Aqui tem um rio morto, o Tietê, e as coisas acabam acontecendo de um jeito mais duro.” Músicos do que ficou conhecido como Vanguarda Paulista — Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé — já tinham essas personagens duras, lembra Kiko.

“Mas talvez seja cedo para achar ligações directas com os protestos, sem ser um lado activista. Não adianta compor música de homenagem.” No começo dos protestos, Kiko chegou a fazer, sim, “desenhos militantes”, e os estudantes do MPL chegaram a usá-los. “Aí, tinha um foco. Depois, quando as manifestações continuaram, a gente já não sabia quem estava na rua, porque havia gente de direita gritando ‘Fora Dilma!’. Teve gente de vernelho que apanhou de skinhead. Vi muita coisa estranha. As pessoas estavam com ódio e tudo explodiu.”

Kiko vê semelhanças com o clima antes do golpe militar. “Em 1964 também houve um momento de as pessoas saírem para a rua e depois veio o golpe, a manifestação acabou se transformando noutra coisa. Quando agora eu vi a Rede Globo dizendo ‘O gigante acordou’, fiz um desenho que é uma coxinha gigante. Aqui em São Paulo, coxinha é alguém de direita. Classe média que apoia violência policial. De repente essas pessoas estavam na rua também.” Kiko cansou-se de postar os desenhos militantes no Facebook. “Voltei ao desenho erótico.” Entretanto, para quem faz música agora, o grande lance político é estar fora “das grandes corporações”, diz. “A minha geração aparece quando as gravadoras estão desaparecendo. A produção do Metá Metá [a outra banda em que está envolvido] é dos músicos. O download gratuito no Brasil foi virando uma coisa essencial: a gente grava o disco com orçamento muito barato em alguns dias, lança gratuito digital, um dia antes manda um release para vários blogues e a mídia oficial acaba procurando a gente.” Depois, o dinheiro vem dos concertos, onde eles também vendem vinis a 50 reais e camisas. “Isso ajuda na sobrevivência do grupo. E essa postura de reiventar o mercado é política. Claro que a pessoa vai ter de instalar Internet, mas pode ter a cultura de graça.”

Era isso que o Governo estava a promover, durante o ministério de Gilberto Gil-Juca Ferreira, diz Kiko, até ter voltado atrás com Ana de Hollanda [entretanto substituída por Marta Suplicy, a actual ministra]. “Estávamos caminhando para a democracia digital. É quase como reforma agrária. Quem compra CD a 50 reais? Eu não.”





Christiane Jatahy e o Tchekov brasileiro

Daqui a uma semana, a carioca Christiane Jatahy, 45 anos, actriz, encenadora e videoasta, vai estrear no SESC de Copacabana a sua leitura de As Três Irmãs, de Tchékhov. Uma encenação que também é um documentário que também é uma instalação. E tudo isso, diz a autora, é político. “Esse projecto tem três núcleos. O primeiro, utopia.doc, é um documentário em que eu, o câmara e as três irmãs vamos em casa das pessoas perguntar o que é a utopia hoje.” Já fizeram isso entre São Paulo, Frankfurt e Paris. “Em Paris, a gente entrevistou uma série de imigrantes sobre a utopia: Congo, Mali, Irão, Rússia, Argélia, Japão.” Os actores criaram um trabalho a partir das entrevistas e foram mostrá-lo a casa das pessoas entrevistadas. Essa performance também foi filmada. “Um muçulmano do Mali ainda não tinha casa, estava num abrigo. Fizemos a performance para ele num parque.” Exibiram parte desse material em Frankfurt e a ideia é ir continuando, entrevistar gente em vários lugares do mundo e do Brasil, “um documentário em processo”. Em Frankfurt, coincidindo com a Feira do Livro em que o Brasil era tema, Christiane pediu a dez escritores brasileiros que fizessem um texto a partir das respostas de imigrantes e de alemães que nunca saíram do país. “Levámos os autores nas casas das pessoas que tinham dado essas respostas. Um diálogo muito bonito sobre projecção do futuro.”

O resultado foi visto em São Paulo, onde também filmaram refugiados políticos. “A gente vai gerando encontros, uma discussão actual que inclui o momento político no Brasil. As três irmãs estão no Rio de Janeiro, e a pergunta é se é possível mudar. Tanto na peça do Tchékhov como na minha a Irina é a mais jovem, e na minha peça ela é um ser político. De alguma maneira, é um desses jovens que estão indo na rua pedir mudança.”





Ronald Duarte e o mar vermelho

Criado nos subúrbios do Rio, depois morador em Santa Teresa, Ronald Duarte, 51 anos, já ouviu muita bala. “Agora tem uma cortina de fumaça chamada UPP”, diz, referindo-se às Unidades de Polícia Pacificadora, projecto em curso para tirar as favelas ao controlo armado do tráfico, e do qual Ronald descrê, a começar no facto de a polícia ser militar. Foram polícias militares da UPP da Rocinha que torturaram e mataram Amarildo, o pedreiro que se tornou um símbolo nas manifestações de 2013. Até o corpo aparecer, protestos por todo o país foram repetindo a pergunta: “Cadê o Amarildo?” Um grupo de artistas reuniu-se para fazer uma acção em Ipanema e foi aí que Ronald tornou o mar vermelho. Chamou-lhe Mar de Amor.

“É uma grande agonia, já é o desespero”, diz. “Não é o Amarildo, é que toda a hora matam-se Amarildos, tem gente esperando que venham saúde, educação...” Emociona-se. Pausa. Como foi isso de pôr o mar vermelho? “Pesquisei. Tenho aquário e o que o peixe gosta de comer é vermelhinho. São uns legumes desidratados. Então pensei em 500 quilos de beterraba desidratada. Deu 100 quilos de pó, separei 20 sacos de cinco quilos.” Distribuiu por 20 amigos. “Aí fomos para a praia, e pedi a cada um que ficasse num ponto do calçadão.” Da Ponta do Arpoador ao último amigo era um quilómetro de mar. Entraram na água e foram lançando o pó. “Durante 20 minutos ficou totalmente vermelho. Depois vieram vários cardumes comer, e vi que estava certo, que não tinha problema de poluição.” Foi uma resposta alternativa, diz. “Porque estas manifestações estão todas manipuladas pelo PT, pelo PSOL [ex-comunistas]. Está todo o mundo anestesiado vendo a TV Globo, quando temos de pensar que o outro faz parte do outro.”

Ronald chegou há dias de Berlim, onde foi fazer a instalação Boiada, outra resposta política. “O Brasil desmatou a Amazónia para botar o boi. O boi mais velho, doente, ia na frente, as piranhas comendo ele. Os artistas são esse boi de piranha. Eu estou fora, não quero alimentar poder, nem pasteurizar ninguém. Quero alimentar os potenciais das pessoas.” Na Feira ArtRio, “onde se movimenta muito dinheiro”, pôs 40 pessoas com cabeças de boi aplaudindo. “É a situação da arte na feira, o boi que vai para a matança e vira dinheiro.”

Na próxima obra vai responder às ruas engarrafadas do Brasil com balões gigantescos cheios de gás.





Nuno Ramos e a pergunta sem resposta

Aos 54 anos, Nuno Ramos, escritor e artista plástico, acha que já coleccionou “um número enorme de fracassos” quanto a projectos de arte pública que nunca deixaram de ser projecto. Teve “alguma noção de público” com as reacções a trabalhos como 111, sobre os 111 mortos pela polícia na prisão de Carandiru, em 1992, ou Bandeira Branca, quando pôs urubus vivos no vão da Bienal de São Paulo, em 2010. Mas a realidade é que no Brasil, fora a canção, “a cultura roda num circuito”.

Estende este cepticismo ao impacto real das manifestações. “É difícil quantificar o quanto chegaram ao Brasil profundo, ou só ficaram num espaço de mídia. A dicotomia entre manifestantes de classe média e vândalos que quebram tudo parece esconder em vez de revelar. Está no lugar de alguma coisa muito mais violenta que o Brasil profundo continua gerando. Não aceito essa dicotomia, não acho que isso nos faça assessar a violência de cidadão contra cidadão, cidadão contra polícia, polícia contra cidadão.” O que sobra disso, alerta, é só “um boneco de piche”, no qual as pessoas se grudam. “Elegemos um pária, que é o suburbano violento, dizendo que se não fosse ele estaríamos todos nas manifestações.”

O ponto de Nuno Ramos é este: “Continuamos morrendo na rua.” Não é só a arte que tem dificuldade em tornar-se pública no Brasil, é “a distribuição de renda ridícula, a dívida social centenária com minorias étnicas”. Sem querer “demonizar a mídia”, porque acha “ridícula essa tese conspirativa” antimediática, Nuno crê possível que “as jornadas de Junho tenham virado um artefacto, um duplo, uma simulação de vida social”, com essa alternativa entre “o gatinho que pinta a cara e o monstro de rosto coberto”, o bonitinho e o black bloc. “A gente elege uma certa simulação do público, quando público é entender como a polícia continua matando tanto. O Brasil é um lugar onde a vida não vale nada. Isso é que é o principal.”

A sua próxima tentativa de fazer algo público vai ser na Bienal da Bahia, entre Maio e Setembro. “Salvador está vivendo uma tragédia urbana. Aqueles casarões caindo e a especulação imobiliária. Primeiro pensei num boi morto em cima da ruína, mas não vai ser possível, por causa do IPHAN [Instituto do Património]. Hoje tem que prestar conta a tanta gente. A vida social é um caos, mas a vida legal é disciplinada. A cidade está caindo aos pedaços mas você não pode tocar na ruína.”

Em alternativa, iluminará terrenos. “Círculos de luz com postes de dez metros. Deixa toda a noite aceso: é uma pergunta. Não deixa de ser um espaço de que a gente toma conta. Liga a luz e fica esperando. Um lugar vazio que você ilumina para ver o que acontece. É o que mais se aproxima da obra pública, esse lugar nenhum.” Outra ideia: “Pegar na escada do Museu-Escola Lina Bo Bardi [na Baía] e replicá-la numa igreja cujo tecto caiu, como um altar.”

Terceira ideia, para Natal, capital do Rio Grande do Norte, em Junho: “Pegar em água do mar e congelar dois blocos gigantes. Devolver um à praia e levar o outro para o interior da cidade. O mar virando mar de novo. Acho parecido com o círculo de luz, uma coisa mais interrogativa. Não sei se eu saberia fazer uma resposta.” 

Sugerir correcção
Comentar