Dignidade Humana

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Quando há transformações radicais na sociedade é vital que não se deixe cair a noção de Dignidade

Carvalho da Silva disse: "Revoltemo-nos contra a ausência de dignidade com que tratam os trabalhadores." A proclamação vem citada no PÚBLICO de domingo. Ler esta frase, assim isolada, encabeçando uma página do jornal, fez ressoar em mim, mais uma vez, a palavra Dignidade e fez abrir uma sucessão de memórias sobre o que ela significa e como a busca da Dignidade para todas as pessoas marcou a história da Europa e do mundial nos últimos séculos.

O significado de Dignidade Humana não é o mesmo se olhamos historicamente para a luta contra a escravatura ou para a conquista de direitos laborais e sociais dos operários nos séculos XIX e XX ou ainda para a luta pelos Direitos Humanos na segunda metade do século XX. Assim como não é o mesmo quando falamos de luta pelos Direitos Humanos nas democracias deste início de século XXI. O conceito de Dignidade Humana vai evoluindo historicamente, como todos os conceitos que têm real correspondência social.

Já não faz sentido, porque não é socialmente necessário, reivindicar que os negros têm alma e são seres humanos, com direito à sua dignidade, que passa pela sua não escravização. Também já não é necessário reivindicar que os trabalhadores das minas ou das indústrias europeias do século XIX tinham direito a descanso semanal e a remuneração que lhes permitisse assegurar a sobrevivência e a reprodução de mão-de-obra, para assegurar o próprio desenvolvimento económico. Em cada momento, de acordo com contexto em que foi vivida, a defesa da Dignidade Humana foi sempre a referência das lutas pela construção de sociedades mais justas, mais equilibradas, mais, mais diversas.

Como sempre, a luta pela Dignidade deveria estar no centro das preocupações políticas, tal como está no centro das lutas cívicas. A luta pelo aperfeiçoamento da democracia passa pela luta pelos Direitos Humanos, pela sua extensão a cada vez mais sociedades, pelo seu aprofundamento em cada sociedade e em cada dimensão da vida, garantindo a cada vez mais pessoas uma vida com Dignidade.

Estas ideias não são retórica. São o que de facto deve separar o trigo do joio em política. Lutar, por exemplo, por melhores condições de vida para as pessoas, reivindicar melhores salários e igualdade salarial para mulheres e homens que desempenham a mesma tarefa, lutar contra o desemprego, lutar por uma sistema de educação universal, exigir um serviço público de saúde para todos, reivindicar igual ocupação do espaço público por mulheres e homens, pugnar por que ninguém seja excluído em função da cor da pele, reivindicar reconhecimento de identidade de transgéneros e transexuais, lutar pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo, exigir que casais do mesmo sexo sejam candidatos à adopção de crianças, tudo isto são dimensões da Dignidade Humana, que têm a mesma importância e são centrais no que é a construção de uma sociedade democrática.

Por isso, num momento de transformações radicais na sociedade europeia impostas por uma revolução de inspiração ideológica neoliberal que tem como objectivo subverter a democracia e atacar os Direitos Humanos - ao aprofundarem as desigualdades e ao empobrecem a população - é vital que não se deixe cair a noção de Dignidade Humana. É estruturante em qualquer pensamento democrático, seja de esquerda seja de direita, mas, insisto, democrático, a defesa da Dignidade Humana, o que só é possível respeitando os Direitos Humanos. E quando se fala em Direitos Humanos no século XXI, fala-se de todos os direitos: os políticos, os sociais, os económicos, os laborais, os de identidade. Não há direitos prioritários nem mais ou menos importantes.

A democracia é algo em transformação hoje, como o foi antes. Defender e aprofundar a democracia hoje é a forma de lutar contra a avassaladora revolução em curso que procura esmagar a Dignidade Humana de larguíssima parte da população europeia. Lutar pelos Direitos Humanos, em todas as suas dimensões e diversidade, é combater a revolução desigualitária que está em curso. Por isso, fazê-lo, hoje, pressupõe ir para além da defesa da democracia do Modelo Social Europeu, que manteve exclusões.

Significa ser capaz de lutar pela construção de uma sociedade em que todas as pessoas sejam igualmente reconhecidas e aceites, sejam homens, sejam mulheres, sejam heterossexuais, sejam gays, sejam lésbicas, sejam transexuais, sejam brancos, sejam pretos, sejam ciganos, sejam portadores de deficiência, sejam não portadores de deficiência. E não ficar agarrado a referências e a modelos desigualitários e redutores, que reproduzem estereótipos, racistas, sexistas, homofóbicos. Em suma, que excluem.

Nota: esta crónica regressa a 18 de Agosto

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