Águas ácidas da mina de S. Domingos usadas para tomar banho e "curar" doenças

Na tarde quente dois rapazes e uma rapariga, com idades entre os nove e os 16 anos, banham-se nas lagoas de águas ácidas da mina de S.Domingos,no concelho de Mértola. Antes disso cobriram o corpo com lama impregnada de enxofre, "para curar doenças da pele e também por causa do calor", nas palavras do mais velho. Tudo acontece junto aos antigos moinhos, onde a pirite era reduzida a pó quando a mina funcionava. Nada os demove a abandonar o local. Ouviram os mais velhos dizer que estas águas fazem bem à pele. "Não temos medo de morrer", solta o mais novo, enquanto cobre o corpo com lama cinzenta. O cheiro intenso a ácido e a metal fazem arder a garganta. Mas os moços insistem em mostrar que não receiam entrar nas águas multicolores, dando mergulhos uns atrás dos outros. A única consequência visível da proeza é a mudança da cor das cuecas que fazem as vezes de fato de banho. Não se trata da primeira vez que nadam nas lagoas, criadas há mais de uma dezena de anos para fazer a decantação das escorrências da antiga mina."Se amanhã estiver calor como hoje, voltamos cá outra vez", garante a rapariga, em jeito de desafio, enquanto se deita na lama. Uma habitante de S.Domingos, Maria Raimundo Baptista, confirma que não são só as crianças a acreditar nas propriedades curativas das águas ácidas:"Chegam a vir do Algarve encher garrafões para curar feridas". "As águas ácidas fazem bem ao reumático", declara Deolinda Contreiras, que se encontra de férias na povoação, acrescentando que se trata "de uma crença que já vem dos antigos". As duas mulheres afirmam, no entanto, nunca ter sabido de ninguém que tenha "metido o corpo todo nas águas presas" - ou seja. nas lagoas.Contactado pelo PÚBLICO, o director regional do Ambiente e Ordenamento do Território do Alentejo, Pinto Leite, começa por duvidar que alguém ouse banhar-se num lugar tão contaminado. Depois dá indicações para que seja recolhida água para análise nos sítios onde as crianças foram vistas a tomar banho."Fiquei arrepiado", comenta, após de ter visto o resultado das análises. O teor de PH da amostra era de 2,4, quando a água deve ter um PH neutro, ou seja, de 7."Funcionários dos meus serviços confirmaram que a população de S.Domingos há muito que faz uso daquelas águas, alegando que são boas para as doenças da pele", refere então. Com tão elevado grau de acidez, Pinto Leite não duvida que estas águas, "onde nem os coliformes fecais sobrevivem", são mesmo "para escamar". O presidente da Junta de Freguesia de Santana de Cambas, José Rodrigues, diz que há muito tempo alerta as autoridades "para os perigos que representam, para a saúde pública, as lagoas de águas sulfúreas" sem qualquer protecção. O problema agrava-se "quando chove", frisa o autarca. A água sobe e infiltra-se nas escórias, ficando ainda mais contaminada químicamente."Infelizmente as pessoas não se queixam muito", acrescenta José Rodrigues, explicando que as comunidades que sempre viveram nas cercanias do couto mineiro "se habituaram aos focos de poluição". "Quando eu era miúdo, ia com outros rapazes da minha idade para as lagoas observar como aquelas águas derretiam as meias de nylon", recorda.O autarca não consegue perceber como é que as autoridades não chamam à responsabilidade a concessionária da mina, a empresa La Sabina "que pura e simplesmente nunca se preocupou com o problema ambiental que deixou" no couto mineiro desde que este foi encerrado à exploração, em 1964. Alerta ainda para o facto de a ribeira que desagua na albufeira da barragem que os espanhóis construíram no rio Chança, afluente do Guadiana, atravessar as escombreiras dos rejeitados ou ganga, libertados pelos fornos das antigas minas. Ao longo do seu percurso, a linha de água "recebe o líquido lixiviado com elevada presença de óxidos dissolvidos, que é lançado na albufeira de onde é retirada água para consumo humano e para regadio na província espanhola de Huelva", afirma José Rodrigues.Gaspar Nero, investigador na empresa Exmin, à qual foi atribuída a tarefa de recuperação ambiental e a instalação de sistemas de segurança em mais de uma centena de minas portuguesas, garante que no próximo ano haverá uma intervenção na mina de S.Domingos, tendo sido elaborado pelo Instituto Geológico e Mineiro um estudo nesse sentido. Em redor desta superfície de águas ácidas será colocada uma vedação. A maior preocupação da Exmin vai para a grande lagoa que se foi formando, desde 1964, na cratera aberta à superfície pela exploração da pirite, junto do antigo bairro mineiro. "Não sabemos das razões que provocam a elevação das águas na cratera, de onde vêm e como chegam ao local", diz Gaspar Nero. As intervenções no couto mineiro de S.Domingos vão incidir, ainda, sobre os coroamentos (os paredões de terra) das quatro barragens que forneciam água à mina quando esta estava em exploração. Hoje são espaços de lazer "que importa preservar, mas que implicam trabalhos de reforço da sua segurança" salienta o investigador da Exmin. O objectivo último é afastar dos locais onde estão depositadas milhões de toneladas de escória contaminada as linhas de água que afluem à mina, "para reduzir as infestações de águas ácidas e a contaminação dos terrenos a jusante" do couto mineiro, refere Gaspar Nero. C.D.Quando a mina de S.Domingos encerrou, em 1964, por alegado esgotamento de um dos mais ricos filões da faixa piritosa ibérica, a empresa concessionária do couto mineiro, a Mason & Barry, deixou um cenário de destruição "sem paralelo em todo o Alentejo", pode ler-se no preâmbulo do plano geral de urbanização da mina, documento de 1994 que já sofreu várias alterações, mas que tarda em ser aplicado. Depois da desenfreada delapidação, resta uma paisagem desértica, coberta por milhões de toneladas de escória e cinzas. Em volta da povoação que albergou durante um século gerações de mineiros permanecem por recuperar as terras vermelhas revolvidas pela extracção da pirite e as várias charcas (lagoas) insalubres de águas ácidas de muitas cores, cheirando a metal e a enxofre.Heitor Domingos que nasceu em S.Domingos e é filho de mineiros, recorda num livro que escreveu com o título "Recordações" que, durante muitas décadas,"as chaminés da fábrica de enxofre cuspiram baforadas de fumo espesso e negro", que espalhavam cinzas numa grande área. A água e a terra contaminadas durante um século foram deixadas por tratar, sem que, até hoje, as autoridades pedissem responsabilidades à empresa La Sabina - que no séc. XIX concessionou o couto mineiro à Mason & Barry - pelo grave atentado ao meio ambiente, comestido na mais completa impunidade.Os ecossistemas afectados pela extracção mineira, especialmente junto às antigas fábricas de enxofre, mereceram do realizador de cinema João Nuno Pinto - que filmou no local, em Agosto, um "spot" publicitário - um comentário à altura das circunstâncias. " S.Domingos oferece condições ideais para cenários de destruição e morte". C.D.

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