Real Madrid: títulos, "glamour" e negócio

O Real Madrid faz hoje cem anos e espera comemorar o centenário com a vitória na Taça do Rei contra o Deportivo da Corunha, a primeira honra de outras que o emblema quer encadear na sua consagração. Designado como o melhor clube do século XX pela FIFA, o Madrid - como sinteticamente é conhecido por um apelido de exclusão face ao rival da cidade, o Atlético de Madrid -, junta hoje os pergaminhos benévolos da sua história, os títulos, ao "glamour" de equipa moderna e activa no mundo dos negócios."O Madrid é a equipa do poder, seja qual for o poder, foi assim que nasceu, foi assim que evoluiu, foi assim que viveu no franquismo, durante a transição democrática e agora com o Partido Popular [conservador] no poder", afirma, ao PÚBLICO, Joaquín Estefania, antigo director do diário "El País" e que confessa a sua adesão ao madridismo. A história do clube denota uma peculiar capacidade de adaptação às vicissitudes de um século: nasceu em 1902, herdeiro de um espírito liberal que colocava o desporto como parte integrante da educação. O monarca Alfonso XIII concedeu-lhe em 1920 o título de Real, que o clube perdeu com a República, readquirindo-o mais tarde. Durante a Guerra Civil, de 1936 a 1939, o seu presidente foi um devoto republicano, Sanchez Guerra, que a vitória dos nacionais de Franco mandaria para a prisão e, depois, para o exílio em Paris. A Guerra, sucede em 1943, Santiago Bernabéu, homem da Confederação Espanhola das Direitas Autónomas, que combateu ao lado do generalíssimo, e mandou quase o mesmo tempo no Real Madrid que Franco em Espanha.São estes os factos como também é verdade que o Real Madrid tem uma imagem colada ao centralismo político espanhol, apesar do seu fundador e primeiro presidente ser um burguês catalão, Juan Padrós Rubió, nascido junto às Ramblas e com negócio aberto nas Puertas del Sol madrilenas. "Por estar em Madrid, o clube sempre foi identificado com o centralismo, uma imagem negativa que tem como pano de fundo que todas as celebrações franquistas tivessem como palco o seu estádio", admite Estefania. Mas, observa o jornalista, "existe uma maioria silenciosa de cidadãos que se afirma madridista".A imagem de equipa do regime, melhor dos "regimes", não inviabilizou uma alteração. "Muita gente saiu do armário", ironiza Joaquín Estefania, referindo-se à intelectualidade de esquerda que assume o branco madridista como a sua cor desportiva. "Isto aconteceu porque Florentino Pérez chegou à presidência do clube e contratou Jorge Valdano", prossegue Estefania, E foi assim que no palco, entre os políticos de turno no poder, estão também os da oposição, que sindicalistas aplaudem em uníssono com banqueiros, que intelectuais e empresários sorriem ao mesmo tempo.Perez, empresário do sector da construção e imobiliário, com uma forte empresa que trabalha na capital espanhola, abriu este horizonte. "Florentino recuperou as grandes linhas do Real Madrid, 'mima' os jovens, contrata excelentes jogadores como Figo ou Zidane, e gosta do bom futebol, não da mesquinhez dos resultados", observa o ex-director de "El País". Por isso, para director-técnico, escolheu Valdano, esteta da bola, crítico com as ditaduras, "rojo" para alguns e "um señor" para todos.Mas, para além da mudança de estilo, Florentino Pérez obrou o milagre da reclassificação de terrenos, que permitiu ultrapassar uma dívida de mais de 55 milhões de contos e contratar estrelas. No seu primeiro ano de mandato, Luís Figo, depois o francês Zinedine Zidane e, agora, fala-se do também francês Patrick Vieira. Não foi fácil conseguir a aprovação das autoridades regionais e municipais madrilenas para, na actual cidade desportiva do clube, no alto do Paseo de la Castellana, substituir o espaço verde histórico por quatro torres, cada um com 215 metros de altura, mais um pavilhão multiusos com 20 mil lugares e milhares de lugares de estacionamento. Mas Pérez, promotor imobiliário e homem de sucesso empresarial, conseguiu-o, só com a oposição e a divisão dos socialistas. Da gestão deste projecto virá o dinheiro para a edificação de uma nova cidade desportiva (ver outro texto).Mas não foi só isto que a nova direcção, de executivos madridistas, conseguiu. Contratou estrelas e paga-as através dos direitos de imagem, de que o clube reserva 50 por cento para as suas arcas. A associação do atleta ao clube elevada à sua maior potência: é assim que metade do que a Coca-Cola ou a Galp pagam a Figo vai parar às arcas realistas, o mesmo sucedendo com Zidane e, para breve, com o brasileiro Roberto Carlos. Depois há o "merchandising", cuidado ao extremo por ser negócio rentável, trabalhado no mercado interno com o jovem Raúl. Uma sábia mistura de "glamour", êxito desportivo e de negócio.As taças ganhas e os campeonatos conquistados são história do passado. O presente do Real Madrid é a tradução económica e social dos novos triunfos e o futuro, para os seus fiéis, de anunciadas e inevitáveis vitórias. Mesmo na luta com o fisco, que agora lançou uma campanha sobre as equipas de futebol das I e II Divisões espanholas, em que há divididas pendentes, os emblemas vão ser tratados com carinho. Nunca a união do cimento com o espectáculo da bola foi tão frutuosa. É verdade que o mundo mudou.

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