Estranhas sentenças

Há tempos, ao ler algumas sentenças, verifiquei a forma profunda como os estudos psico-sociológicos tinham penetrado no mundo da justiça. Quando se invoca, como desculpa, provir o réu de uma "família disfuncional", viver "num ambiente de degradação moral" e ter sofrido "a repressão do eu", tudo extractos de sentenças reais, entramos num plano que só pode conduzir ao desastre. Tradicionalmente, o juiz apenas olhava o indivíduo, sem ter em conta o que à sua volta se passava. A lei do pêndulo fez com que hoje qualquer crime tenda a ser visto à luz de catalogações sociológicas, o que gera clivagens indevidas entre as famílias "organizadas" "versus" as "desviantes", entre os indivíduos "adaptados" "versus" os "rebeldes", entre as vítimas "de carências afectivas" "versus" os seres "amplamente amados". Ironicamente, o mesmo crime corre o risco de receber uma sentença mais dura, se o réu pertencer a uma "família normal" da Lapa do que a uma família "desagregada" do Casal Ventoso. Depois disto, passei a seguir as sentenças registadas nos meios de comunicação social com outra atenção. E a olhar sobretudo um tema crucial - a presunção da inocência. Foi por isso que notei as palavras do juiz de Ílhavo, o qual, na semana passada, condenou, a 25 anos de cadeia, Tó Jó, o filho do casal assassinado em Agosto de 1999. Os outros dois acusados, neste crime supostamente "satânico", eram Sara, sua mulher, e Nuno, um amigo. Ambos foram absolvidos. Segundo o juiz-presidente, dr. Paulo Valério, "não foram produzidas provas em audiência e nos autos que permitissem, para além de qualquer dúvida razoável, estabelecer a ligação dos dois arguidos (Nuno e Sara) com o crime". Infelizmente, continuava: "Havia elementos para a condenar (no caso de Sara) e intuição do colectivo que esta o planeou (o crime), mas não a convicção jurídica..." Será que o dr. Paulo Valério não parou um minuto para reflectir nos efeitos que estas suas palavras poderiam ter na confiança que os cidadãos devem depositar nos tribunais? Apesar disso, a sua posição de fundo está certa. Quando há dúvida razoável, não se pode condenar um arguido. Ponto final.Quem assista a um julgamento em Portugal e o compare com as imagens que vimos nas séries anglo-saxónicas apercebe-se-á rapidamente que, no nosso país, faltam os objectos - resultados de exames ao sangue feitos nos laboratórios da polícia científica ou armas utilizadas para cometer o crime - apresentados nas salas de audiência. Aqui, tudo se reduz ao amontoado de folhas amareladas, cozidas à mão, a que se chama "o processo". Antes de entrar na sala, antes de ter ouvido o que os advogados têm a dizer, antes de ter observado eventuais provas, o juiz já "sabe" como vai redigir a sentença. No fundo, ele é vítima de um sistema que o deixa com "intuições", mas sem provas.Dadas estas condições, pareceria natural que houvesse mais casos de erros judiciários. Curiosamente, raramente eles vêm à superfície. A minha "intuição" diz-me, contudo, que a sua menor frequência não se deve à excepcional competência dos magistrados portugueses, mas ao facto de os presos injustamente condenados não terem advogados capazes de lutar pela reposição dos factos. Um caso existe, e documentado, em que graves dúvidas foram levantadas sobre uma condenação. Trata-se do julgamento de Tiago Palma, objecto de uma Grande Reportagem, transmitida pela SIC, em 1998. A 10 de Junho de 1995, o antigo Dia da Raça, um negro, Alcindo Monteiro, era morto por um grupo de "skinheads". A classe política e a imprensa denunciaram, em coro, a violência racista, o que colocou a polícia sob grande pressão para encontrar culpados. Pouco depois, foram presos vários jovens, dos quais alguns assumiram o papel de "arrependidos". Passado um ano, Tiago Palma, que, de facto, tinha participado numa jantarada na Outra Banda com "skinheads", tendo vindo depois, com eles e com outros, até ao Bairro Alto, era preso. Com base no relatório da polícia - que partiu da presunção, não da inocência, mas da culpa - o Ministério Público acusou-o de homicídio e genocídio. Tiago estava metido num sarilho. Por um lado, era um rapaz pouco articulado; por outro, numa cidade que praticamente desconhecia, havia estado embriagado na noite crucial. A agravar tudo, tinham passado 12 meses. Nas declarações que prestou à polícia, não só se baralhou sobre o trajecto que seguira, como foi incapaz de nomear com quem andara. De uma coisa ele estava certo: não matara ninguém. Mas o facto de não existir a mínima prova que o ligasse aos homicidas de nada lhe valeu. Acabou por ser condenado a 18 anos de prisão. Continuando a declarar-se inocente, recorreu para a Relação e para o Supremo Tribunal. Sendo as leis portuguesas o que são (evidentemente nada fora gravado durante as audiências), as instâncias superiores limitaram-se a confirmar a sentença. Restava-lhe a esperança de que aparecessem novas provas, o que permitiria a reabertura do processo. Não sendo abonada, a família decidiu fazer investigações, acabando por descobrir testemunhas que não tinham sido interrogadas pela polícia. Estas confirmaram ter estado com Tiago longe da Rua Garrett. Para o juiz, contudo, isto foi tido como insuficiente. De tal forma foi conduzida a investigação que não sabemos se ele é inocente ou culpado. Uma coisa é certa: não foi nas suas botas, mas nas de outro jovem, que foi encontrado um tufo de cabelos pertencentes à vítima. Tiago poderá ter estado na Rua Garrett, poderá até ter colaborado na morte de Alcino Monteiro, mas contra ele não existem provas. Ao contrário do que sucedeu com Sara, a dúvida não jogou a favor de Tiago. Ora, num Estado de direito, quando há uma dúvida razoável, os arguidos são considerados inocentes. Foi isto que, apesar do desvio confessional, o juiz de Ílhavo fez. É mais terrível que um inocente apodreça nas cadeias do que um culpado saia em liberdade.

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