Em defesa do Papa

Se Cristo se foi embora da Terra Santa - ele sempre encontrou os melhores testemunhos de santidade nas pessoas e nos lugares que a propaganda oficial assinalava como malditos -, que foi lá fazer o Papa? Que procuram os cristãos num sepulcro vazio? Que interesse por uma cidade que desde há muito dá vontade de chorar: "Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados" (Lc 13, 34-36; 19, 41-44)... E depois das lamentáveis Cruzadas pela libertação dos Lugares Santos, não será tempo de convidar as Igrejas a deixarem de vez essa terra entregue às disputas entre árabes e judeus?Não é com algumas passagens bíblicas e seleccionados acontecimentos históricos que podemos avaliar o sentido da aventura de João Paulo II nas últimas semanas. Ao escrever este texto ainda não estou, como é óbvio, em condições de fazer o balanço de uma peregrinação que só hoje termina. Nem sequer posso saber se o Papa conseguiu livrar-se das numerosas minas políticas e religiosas postas no seu caminho. Mas a ratoeira introduzida em alguns meios de comunicação social tentou reduzir a complexa viagem de João Paulo II a uma única prova: irá ou não pedir perdão pelo silêncio de Pio XII durante o Holocausto? A vigilância da comunidade judaica mostrar-se-ia sempre decepcionada enquanto o Papa actual não sentasse Pio XII no banco dos réus...Bernard-Henry Lévy, um conhecido filósofo judeu, denunciou essa manobra num vigoroso e documentado artigo de primeira pagina do "Corriere della Sera" (1713/2000). Não suportou as historietas sobre alegadas insuficiências do pedido de perdão de um papa polaco, reaccionário, surdo à intensidade do sofrimento judaico, a sua especificidade e às responsabilidades cristãs no Shoah... Seja qual for a opinião que se possa ter deste papa noutras questões, Wojtylia fez do "dever da memória", da obrigação de não esquecer, o tema central da sua pregação desde o começo do seu pontificado. Não ver isto é cegueira e uma enorme injustiça. Aushwitz em 1978, Mauthausen em 1988, Uajanek em 1991 e na visita à Sinagoga de Roma, a 13 de Abril de 1988, disse textualmente: "Mais uma vez quero exprimir o meu horror pelo genocídio decretado, no decurso da última guerra, contra o povo judeu." E como esquecer a homenagem que em Abril de 1995, na Praça de S. Pedro, prestou à "insurreição do gueto de Varsóvia", com esta espantosa frase: "Os dias da Shoah foram uma verdadeira noite da História. Nela estão inscritos os crimes inauditos contra Deus e contra o Homem."Crimes contra Deus e contra o Homem: que se quer mais?, pergunta B. Henry Levy. Que melhor forma para um Papa vestir o luto de uma tragédia metafísica? E mais: estaremos assim tão seguros, à luz da historiografia recente, de que Pio XII tenha sido, de facto, o "germanófilo" e o "pró-nazi" descrito pelo escritor protestante Hochuth, no "Vigário" (1963)?Seja como for, João Paulo II - muito antes do acto de arrependimento celebrado no passado dia 12 em S. Pedro de Roma - já tinha pedido perdão, na clausura do sínodo europeu dos bispos, pela "nossa passividade em face das perseguições do holocausto dos judeus (7/12/91), pela 'insuficiência' da oposição da Igreja aos nazistas". Na sua viagem a Berlim em Junho de 1991, pediu perdão pela criminosa ligeireza daqueles cristãos culpáveis de "não terem sido suficientemente fortes para levantar a voz contra o desaparecimento dos vizinhos judeus" (16/3/96).A igreja não está - ao contrário do que se repete - na origem do anti-semitismo. Abraham B. Yehoshua recordou, no começo da semana passada, que o ódio abissal aos judeus, dispersos entre os povos, não começou com o cristianismo. Teve início séculos antes da crucifixão de Cristo. São muitos os exemplos de anti-semitismo no mundo pagão. E neste século, o ódio terrível aos judeus explodiu em nações onde também o cristianismo foi perseguido, como na União Soviética ou no regime nazi da Alemanha. Mas a aversão recíproca entre judeus o cristãos não tem que ser eterna. Não são duas formas do fé contrapostas nem concorrentes. São complementares. O judaísmo deveria alegrar-se com o advento do cristianismo o com a sua difusão. O cristianismo nunca poderá esquecer os laços que mantém com o judaísmo antigo.Para Bernard-Henri Lévy, só por ignorância se pode rejeitar a distinção feita por João Paulo II entre o anti-semitismo católico e o anti-semitismo nazi. Este é fundamentalmente pagão e anticristão. Ataca os judeus, não por terem crucificado Jesus Cristo, mas por o terem inventado. A distinção do Papa é exacta, precisa e muito eficaz para medir o que aconteceu na Europa durante a interminável guerra desencadeada contra os judeus (1933-1945). É esta distinção que permite denunciar "os preconceitos e as leituras pseudoteológicas que serviram de pretexto ao longo ódio contra os irmãos judeus" (14/4/96).Acontece, porém, que os factos e os textos referidos - muito anteriores ao gesto de há quinze dias em Roma e da passada quinta-feira em Jerusalém - são ignorados pela grande maioria dos católicos e dos judeus. Mas a ignorância mais grave é outra: hoje, as principais vítimas da Terra Santa não são os judeus! São os palestinianos (muçulmanos e cristãos). A peregrinação, do Papa aos campos de refugiados anunciou uma pátria que lhes é devida e negada.

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