Imperdoável

Administração super-competente de um argumento inteligente e imaginativo, pleno de personagens “cheias” servidas por actores em estado de graça ou lá perto.

Um “mosaico”da América “interior” enquanto palco de tensões e conflitos atávicos sem resolução simples à vista
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Compreende-se bem que Três Cartazes à Beira da Estrada seja um dos filmes mais falados da temporada americana, porque toca em tudo ou quase tudo o que tem sido assunto de discussão pública nos últimos tempos. A violência sexista, para começar, através da história de uma mulher (Frances McDormand, impecável como é costume) tão farta do impasse da investigação sobre o que aconteceu à filha (violada e morta uns meses antes) que comete o arrojo de comprar três grandes cartazes publicitários nos arredores de Ebbing, Missouri (a cidadezinha onde tudo se passa), a desafiar directamente a inacção da polícia local. A violência policial, a seguir (sobretudo através da personagem de Sam Rockwell, o polícia racista e desaustinado à espera de redenção), mas também o ambíguo estatuto da polícia americana enquanto autoridade simbólica, corporizada no incómodo da população local pela forma como os cartazes de McDormand põem em causa o “chief” (Woody Harrelson, a quem a maturidade trouxe a sobriedade e a subtileza que há vinte anos não se adivinhariam, e que aqui fazem da sua personagem possivelmente a mais complexa de todas).

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Com estes elementos, mais um sem-número de ramificações através de personagens e pequenas intrigas secundárias, algumas delas espúrias mas provavelmente naturais num cineasta com formação de dramaturgo como é McDonagh, ergue-se um “mosaico”, mais um mosaico da América “interior” enquanto palco de tensões e conflitos atávicos sem nenhuma resolução simples à vista.

Três Cartazes à Beira da Estrada, mesmo que limitado pelo estilo “limpo” de McDonagh (que é acima de tudo um ilustrador, ainda que não isento de brilhantismo, do seu próprio argumento), é certamente o filme mais consequente e mais complexo do seu autor. É melhor do que um dia normal dos Coen (o Sul dos EUA, o rosto de Frances McDormand: tudo isto é paisagem “coeniana” típica, filmada sem os tiques de exibicionismo auto-destrutivo habitual na obra dos irmãos, com poucas excepções como a de Fargo). Não é melhor, e pensamos muito nisso durante o visionamento, do que seria se este argumento tivesse ido parar às mãos de Clint Eastwood, pelo menos do Clint dos seus melhores dias: o que falta a Três Cartazes... para atingir outra ordem de grandeza é a capacidade de mergulhar a fundo no lado negro da “psique americana”, de encenar os atavismos no momento em que se confrontam com um sentido básico de justiça mesmo que ele se confunda com uma vontade de vingança aquém ou além das leis escritas e oficiais, fazer sentir toda esta agitação (incluindo a agitação “interior” das personagens) com uma violência “telúrica” capaz de fazer chocar “mitologia” e “realidade”.

O argumento parece apontar para aí, em qualquer elemento do trio principal há uma percentagem de “eastwoodianismo”, é por isso que insistimos que é uma pena que o script de McDonagh não tenha antes ido parar aos escritórios da Malpaso. Por outro lado, escrever isto dá impressão de que nos lamentamos em demasia por o filme de McDonagh ser só o que é. Também não é caso para isso, porque o que é, a administração super-competente de um argumento inteligente e imaginativo, pleno de personagens “cheias” servidas por actores em estado de graça ou lá perto, é perfeitamente satisfatório, e capaz de algo que não tem sido muito comum: falar de questões delicadas sem fazer disso um passeio por um roteiro de sentimentos exemplares, dar respostas ao espectador em vez de o interpelar. Sinal dessa inteligência é a forma como McDonagh acaba o filme, deixando o último golpe narrativo mais ou menos em suspenso: “temos o dia todo para pensar nisso”. “Nisso”, na vingança.

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