Os portadores da memória

Filme-performance da memória. O individual transforma-se em colectivo, no histórico pulsa o íntimo. 120 Batimentos por Minuto : como uma narrativa mitológica que se propaga para (re)construir, solidificar o grupo.

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120 Batimentos por Minuto mostra desde o início a sua energia performática
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Pedaço de vibrante pedagogia, a primeira meia-hora de 120 Batimentos por Minuto, de Robin Campillo, coloca o espectador no centro de um anfiteatro de ideias e sensualidade — a sala de cinema, esperamos, mas também funciona a sala aí de casa. “O que é o Act Up?”, pergunta-se. A explicação é dada de seguida, e, pacto que não pode ser menosprezado, tem em atenção o espectador. Somos bem-vindos.

Desenvolvem-se de seguida a retórica, os rituais e a política (e a reflexão sobre a acção) do ramo francês do Act Up, o grupo de activistas seropositivos formado em 1987 para agir sobre uma epidemia, para combater o silêncio de leis e instituições. Soltaram a palavra e os actos, espectaculares, trágicos, reactivaram a energia nos corpos doentes, impuseram a sua história íntima a uma História oficial. Quiseram lutar contra a devastação nas suas vidas, ser actores, não figurantes — assim ocupam o palco nos momentos iniciais, é assim que 120 Batimentos por Minuto começa, como uma ocupação. Foram performers heróicos que devolviam a violência que se abatera sobre eles.

Nesse começo, 120 Batimentos...mostra logo a sua energia performática. A partir daí haverá sempre metamorfoses, o individual transformando-se em colectivo, no histórico latejando o íntimo — encontra-se sempre a política contígua às zonas erógenas —, o debate dando lugar à dança. A própria ideia de “plano” ganha, em vários momentos do filme, diferentes vidas. É uma dieta omnívora.

Passando-se nos anos anos 90, período em que os efeitos da epidemia foi mais dramático em França (em 1992 Robin Campillo, saído do IDHEC, o Instituto de Altos Estudos Cinematográficos francês, aderia ao Act Up), não é um filme de reconstituição de época. O realizador diria, numa formulação muito feliz, que um filme tem de estar sempre, nos cenários, no guarda-roupa, nos diálogos, entre hoje e o passado para o espectador não sair do presente. 120 Batimentos por Minuto (a terceira longa de Campillo, depois de em Les Revenants, de 2004, e Eastern Boys, de 2013, ter negociado, em andamento inicialmente constrangido e depois conseguindo libertar-se, a presença e a memória dos que morreram) faz então intervenções sobre a narrativa que constituem um espectáculo em si. Tremendamente jubilatório. Nessa sequência de que falamos, por exemplo, o “presente” e o “passado” são distinções inoperantes para dizer o que se está a passar no ecrã: narrações, recriações, projecções, fantasmagorias, movimentos do grupo e “solos” de uma personagem, como uma narrativa mitológica que se propaga para (re)construir, solidificar a identidade dos grupos, a sua memória.

Há um colectivo de activistas, seropositivos e seronegativos (estes sabem que, como membros do Act Up, a sua realidade serológica será sempre “representada” de outra forma publicamente...). Há Sean (Nahuel Pérez Biscayart)  e Nathan (Arnaud Valois), um beijo como provocação política a iniciar uma história privada — numa cena de sexo estaremos com o passado de ambos, cada um conta a sua história ao outro e esse passado apresenta-se na cama.

Têm diferentes velocidades Sean e Nathan: distâncias incomparáveis face à morte. Sendo criações da escrita de Campillo a partir de figuras que cruzaram a vida do realizador, sendo um pedaço da sua biografia (Nathan diz coisas que Robin diz no perfil que traça de si próprio em Agir pour ne pas mourrir, livro de Christophe Brocqua sobre a história do Act Up) são personagens mas são acima de tudo reservatórios de memória disponibilizados ao espectador. Que o convocam — é essa, julgamos, a experiência permitida pelas sequências de dança, momentos em que o individual se dissolve no colectivo e que incluem o espectador nesse abandono (uma sala de cinema cheia, aqui, sim, é decisiva). Já agora, compare-se 120 Batimentos...com O Quadro, de Ruben Ostlund — falamos nele porque está também em exibição nas salas portuguesas, recebeu a Palma de Ouro de Cannes e 120 Batimentos... foi “derrotado”, ficando-se pelo Grande Prémio do Júri. Percebe-se como num caso as personagens caminham para tomar conta da sua narrativa e como as do filme do sueco são sujeitas a demonstrações castigadoras. É esta diferença que permite também que o espectador possa evoluir com a pedagogia de 120 Batimentos... — lidando com as suas próprias resistências ou com os obstáculos que possa deparar em certas sequências (por exemplo, aquela em que o Sena se tinta de sangue...), aprendendo com elas, aprendendo , por exemplo na referida sequência, que a alegoria se desvanece perante a dimensão concreta de performance a que Campillo aí se atreve (essa foi uma acção que o Act Up planeou em Paris, nunca concretizou e que o filme realiza e oferece).

Apesar do júbilo, 120 Batimentos... é tremendamente melancólico. Podemos juntá-lo a Fábrica de Nada, de Pedro Pinho, filme que em momento de crise social, política e moral fez das perdas e da dúvida também proposta de pensamento sobre o colectivo. Onde é que ele está? E pensamos em Lumière!, de Thierry Frémaux e Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier, outros filmes lançados em Portugal em 2017 que nos lembraram que a condição de espectador está investida de uma responsabilidade, cívica e moral. Coisa jubilatória mas em perda: onde é que ele está?

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