No recreio dos Safdie orange is the new black

Somos raptados por este divertimento negro e cheio de cores e fuminhos para o qual Ben e Josh Safdie tiveram a cumplicidade de um aventureiro director de fotografia, Sean Price Williams, e de um teen idol, Robert Pattinson, que quer deixar de o ser. Caos familiar e fantasia, é Good Time.

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A longa noite de Connie (Pattison) para libertar Nick (Benny Safdie) da prisão, depois de um assalto a um banco que lhes correu mal — correria protectora que é também um exercício de poder discricionário de Connie sobre alguém mais frágil, o irmão que tem problemas mentais

Em 2010, Josh e Ben Safdie ainda tinham o pai, Alberto, dentro deles. No filme que fizeram nesse ano, Vão-me Buscar Alecrim, com o jeito de quem conta um conto acrescenta sempre um ponto quando fala da sua vida, havia um pai que se chamava Lenny, era projeccionista, um caótico e um compulsivo, e num dia punha os dois filhos KO com sedativos, porque, divorciado (a “coisa” não tinha sido bonita...), não tinha ninguém que se ocupasse deles na semana em que eles eram seus e ele tinha de responder a uma solicitação de última hora.

Foram momentos angustiantes. Tememos pela sorte dos miúdos (interpretados pelos filhos do Sonic Youth Lee Ranaldo). Nunca mais acordavam. Parte da América que viu Vão-me Buscar Alecrim até se escandalizou: se o filme era autobiográfico, então Josh e Benny tinham sido vítimas de uma família disfuncional e pareciam dar sinais de síndrome de Estocolmo — dedicando Vão-me Buscar Alecrim aos pais de todo o mundo, ao divertimento, aos apartamentos pequenos, a um passado perdido, aos frigoríficos cheios de jogos, dedicando o filme a Alberto, que se tinha divorciado da mãe de Josh e Benny de forma tão tumultuosa quanto Dustin Hoffman e Meryl Streep em Kramer vs. Kramer (Robert Benton, 1979); a mãe vinha mesmo só no final dos agradecimentos no genérico do filme, o herói era esse pai caótico, manipulador, explosivo.

Mas Josh e Benny também se indignaram pela forma como foram olhados como vítimas de abuso. Acham isso uma visão culturalmente grosseira, o que corresponde, segundo eles, a um olhar “politicamente correcto” sobre a infância. Não querem ser uma generalidade, querem ter direito ao caso deles, tal como o viveram — tal como o fantasiam no filme que realizaram para saber o que lhes aconteceu nos primeiros anos de vida. Por isso, na catarse e celebração que era, em simultâneo, Vão-me Buscar Alecrim, o pai (interpretado por Ronald Bronstein) era como um mágico, fazia os filhos desaparecer a golpes de lençóis, era maníaco como as personagens de John Cassavetes, mas agora dentro do que ameaçava tornar-se um filme de Jack Arnold, como  It Came from Outer Space (1953), Creature from the Black Lagoon (1954), Tarantula (1955) ou The Incredible Shrinking Man (1955) — sim, em Vão-me Buscar Alecrim Nova Iorque é cidade ocupada por mosquitos gigantes.

Era sobre esse pai que Josh e Benny falavam, num Verão nova-iorquino, quando percorríamos com eles a cidade. Que os apontamentos musicais de Vão-me Buscar Alecrim, marcando de forma impressionista que cada momento presente já é também o rasto que deixa, já é memória, mostravam ter talvez já desaparecido. (Vão-me Buscar Alecrim experimentava-se como uma pantomima final do “theatrics of a city”, síntese feliz dos Safdie quando falavam do que lhes interessava ali, e que Nova Iorque era aquela que parecia saída do cinema dos anos 70.)

Em 2017 Josh e Ben ainda têm Alberto dentro deles. Não pecamos por abuso de confiança ao dizer isso (até porque se sabe que um próximo projecto, Uncut Gems, produzido por Scorsese, parte dos anos em que o pai trabalhou no mundo obscuro das jóias.) Repare-se como nas duas personagens principais de Good Time, Connie e Nick Nikas (interpretadas por Robert Pattinson e Ben Safdie), vive a mesma obsessão, o desgoverno maníaco, a afectividade, as possibilidades criativas, e violentas, do caos de Vão-me Buscar Alecrim — como se os dois irmãos do novo filme de Josh e Ben fossem o presente dos irmãos do filme de 2010, entretanto crescidos e a reproduzir entre si o que se passou na infância com o pai do filme do Alecrim, as dependências de que as relações se alimentam, a violência e a necessidade, viciante, disso. Em fundo, mas visível, de novo os estilhaços de uma família. Onde há tesouras e tachos, há hipóteses de alguém se magoar, diz-se ali.

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Good Time é a longa noite de Connie (Pattison) para libertar Nick (Benny Safdie) da prisão, depois de um assalto a um banco que lhes correu mal correria protectora que é também um exercício de poder discricionário de Connie sobre alguém mais frágil,  o irmão com problemas mentais. Como se entre um e outro se refizesse uma irmandade e uma dependência que foram modelares no cinema americano: Dustin Hoffman e Jon Voight (O Cowboy da Meia-Noite, 1969), Robert deNiro e Harvey Keitel (Mean Streets, 1973), Gene Hackman e Al Pacino (O Espantalho, 1973), Hoffman e Tom Cruise (Encontro de Irmãos, 1988),

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As sequências iniciais — o assalto, a relação que liga as personagens e como as liga, a fantasia colorida a explodir na cara, literalmente, de Connie e Nick — fazem-nos esquecer que não houve ainda genérico. O filme recria-se em extensão. Depois do genérico, avança a informação comprimida sobre o que se segue à euforia. Esta elasticidade, digamos assim, que Good Time mostra nos primeiros momentos, é o retrato dos Safdie no seu recreio negro. Haverá fuminhos e cores, e fuminhos às cores — haverá sequências em que o plot pode ser a aventura arriscada do director de fotografia Sean Price Williams pelos vermelhos e laranjas e sequências em que para golpes de teatro (a surpresa desagradável de Connie ao destapar o irmão ferido que raptou ao hospital...) contarão mais as possibilidades plásticas oferecidas pela escuridão e pela luz.

Tudo se passará, às tantas, num parque temático chamado Adventure Land. O tesouro que se caça é ácido. E o filme será assaltado por bruscas mudanças de escala nos planos, passando de rostos para vertiginosos voos sobre Nova Iorque, num movimento que balança o espectador entre o reconhecimento e a estranheza, como se Josh e Ben ensaiassem ausentarem-se de si próprios, do estilo que se lhes conhece, para se darem a ver de forma mais gritante (como no Nova Iorque Fora de Horas de Martin Scorsese, 1985, em que o cineasta disfarçou de divertimento auto-paródico a reiteração do seu universo). Se pensarmos em Vão-me Buscar Alecrim, ouvimos a definição melódica de uma canção de Bill Withers (soul singer nesse filme invocado por uma “personagem” interpretada por Abel Ferrara). Em Good Time há uma amálgama sonora feita das coisas contraditórias que absorve e dissolve: a música de Oneohtrix Point Never. Vão-me Buscar Alecrim mostrava “o teatro de uma cidade”, Good Time explicita “the theatrics of the Safdies”.

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Para este teatro, Ben e Josh tiveram a cumplicidade de Sean Price Williams e Robert Pattison, actor que durante um ano contribuiu, com sugestões por email, para o argumento escrito por Ronald Bronstein e Josh Safdie, ansioso que estava e está em fazer desaparecer o seu perfil de teen idol. Por falar em desaparecimentos, há coisas que não mudam com os Safdie: o espectador continua a ser o destinatário de um “género” cultivado em paralelo, o “filme de raptos”. Somos raptados pela energia expressiva e libertadora deste caos.

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