faUSt: que som faz um alegre grupo de dadaístas no Milhões de Festa?

Os faUSt são banda histórica do rock experimental alemão. Nasceram na década de 1970 e continuam em busca de novos sons e expressões. Esta sexta-feira, encontram-se em palco com os GNOD para um dos concertos mais aguardados do festival de Barcelos. Haverá betoneiras envolvidas.

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Jean-Hervé Peron e Werner “Zappi” Diermaier, os sobreviventes de uma histórica banda do rock experimental alemão Jan Lankisch

Todos conhecem aquelas exigências excêntricas das estrelas. Camarins decorados com pétalas de rosa, um boião de M&Ms da mesma cor, uma pista de atletismo nos bastidores, enfim, aquele tipo de coisas que provam que uma estrela é uma estrela. Há um par de semanas, a organização do Milhões de Festa, o festival de Barcelos que iniciou ontem a edição em que celebra uma década de vida, recebeu um pedido peculiar. Foi endereçado pelos faUSt, a histórica banda do rock experimental alemão cuja carreira na década de 1970 se revelou influência marcante para o punk, o pós-punk, a electrónica exploratória e para todos os demais espíritos livres da criação musical.

Os faUSt serão esta sexta-feira, às 23h, protagonistas de um dos grandes acontecimentos do Milhões 2017 (Michael Rother, dos Neu! e Harmonia, marcou presença em 2015, agora é a vez de outras lendas do kraut-rock). Antecipando o concerto que os reúne aos britânicos GNOD, pediram ao “caro promotor” que providenciasse “betoneiras (a trabalhar, quanto mais antigas melhor); barris e peças metálicas (todos os tipos); ferramentas (rebarbadoras / berbequim)”. Acontece que estas não são exigências de estrelas a quererem ver o estatuto comprovado pela forma como lhes saciam os desejos mais bizarros.

Vimos os faUSt no Teatro Maria Matos, em Lisboa, em 2010. Vimos como Jean-Hervé Peron (baixista, trompetista, cantor e muitas coisas mais) e Werner “Zappi” Diermaier, o baterista, os fundadores sobreviventes, então acompanhados por Geraldine Swayne e James Johnston, deixaram marca no chão do palco, perfurado com berbequins. Vimos uma betoneira em palco e como o som que gerava, ora vazia, ora rodando no seu interior os objectos que Hervé nele depositava, se juntava à cadência minimal do ritmo e àquela experiência sónica intensa que era tanto concerto rock quanto happening artístico.

O pedido dos faUSt à organização do Milhões de Festa não é capricho. Nos anos 1970, a banda colocava sofás em palco e sentava-se a olhar o público, que se transformava de observador em observado. Por vezes, os faUSt traziam com eles uma máquina de flippers que podia ser usada a qualquer momento durante a actuação. E ficaram famosas as cenas em que pegavam em martelos para destruir dezenas de aparelhos televisivos enquanto o ruído crescia em seu redor. “Estávamos irritados com a lavagem cerebral feita através da televisão, portanto, para enviar uma mensagem clara, destruíamos montes de aparelhos de televisão em palco”, escreve-nos em entrevista por email Jean-Hervé Peron, francês por nascimento, alemão por vivência de muitas décadas. “Era divertido e era eficaz enquanto performance que suportasse visualmente aquilo que diziam as nossas canções. Usávamos ferramentas e máquinas pelas mesmas razões”. Usavam e usam.

O Milhões de Festa constrói a sua identidade pela cruzamento de música sem hierarquias temporais, culturais ou estéticas. O cartaz da décima edição é nova prova disso mesmo. Até domingo, podemos ouvir em Barcelos Janka Nabay, nascido na Serra Leoa e hoje habitante de Nova Iorque, o hard-rock clássico dos Graveyard, a soul electrónica de Yves Tumor, o psicadelismo hip hop (e funk e soul e o que mais vier) de Gaslamp Killer, o rock sónico dos Meatbodies ou os nossos bem conhecidos Pop Dell’ Arte. Os programadores do Milhões fazem mais. Proporcionam encontros - no sábado, por exemplo, veremos os Cave Story com Duquesa e Ra-Fa-El.

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Jan Lankisch

Foi de um desses encontros que resultou um dos concertos que fez a história do festival, com os barcelenses Black Bombain numa actuação sem rede com os GNOD, banda de Salford, Manchester, que se implantou no underground britânico como comuna ferozmente independente cuja música é ritual feérico assaltando-nos os sentidos com aspereza pós-punk, feitiçarias dub, psicadelismos de origem diversa e o ritmo propulsor da motorika patenteada pelos Neu!. Esses mesmos GNOD repetem agora a experiência. Desta vez, com uma das suas referências, os faUSt. Um encontro bem-vindo, não só pelas afinidades musicais. Neste preciso momento, parecem lançar um olhar semelhante sobre o mundo.

Na apresentação do último álbum de uma já longa discografia (inaugurou-a In GNOD We Trust, em 2011), a banda falava de um ambiente social caracterizado pelo medo e pela incerteza, para o qual pareciam não haver resposta por parte do meio artístico. O fundador Paddy Shine, acredita, porém, que isso irá mudar. “Tem que mudar”. O disco editado em Março é uma manifestação muito directa desse desejo. A música é tão directa e incendiária quanto o título do novo disco: Just Say No To the Psycho Right-Wing Capitalist Fascist Industrial Death Machine.

Jean-Hervé Peron e Werner “Zappi” Diermaier estão, por isso, ansiosos. “O meu corpo e o meu cérebro não são os mesmos que em 1970, ainda assim, tenho a sensação que eu e o Zappi ainda abordamos a música exactamente da mesma maneira”, diz Peron. “Mas talvez agora não seja apenas ‘l’Art pour l’Art’. A situação política e social parece seguir um caminho desconfortável, doente, e através dos meus filhos adultos sinto a urgência de enviar mensagens mais claras. Os GNOD são muito radicais nesse aspecto e é por isso que estou tão entusiasmado por poder conhecê-los melhor no festival”.

Precisamos de ar fresco

Muito mudou no mundo desde que, em 1969, o crítico de cinema, produtor musical e activista político de esquerda Uwe Nettelbeck reuniu em Hamburgo cinco músicos para criar uma banda que representasse o espírito subversivo dos tempos, bem no coração da cultura de massas – tinha assegurado um contrato com a Polydor, argumentando ter em mãos os novos Beatles. Muito mudou desde que gravaram Faust (1971), So Far (1972) e The Faust Tapes (1973). Os dois primeiros com a Polydor, o terceiro para a Virgin de Richard Branson. “Feitas as contas, o resultado foi o mesmo para ambas as editoras. Não fazíamos qualquer cedência e não encaixávamos no sistema da indústria musical. Ainda não encaixamos”. O mote que seguiam, encontra-o Jean-Hervé numa frase do amigo Peter Blegvad, músico (Slapp Happy) e cartoonista. “Ser sério como são sérias as crianças quando brincam”. Ou, dito de outra forma: “Somos um grupo alegre de dadaístas diletantes”.

Os faUSt Trabalhavam numa antiga escola transformada em estúdio, numa zona rural junto ao rio Wuemme. “Vivíamos em isolamento total, sem jornais, televisão ou rádio”, recorda Jean-Hervé. “Talvez pareça ignorante e arrogante, mas foi uma decisão que tomámos para manter a nossa música livre de qualquer moda ou influência”. Muito mudou e mudou esse fechamento ao mundo para procurar uma expressão intocada. Em 1973, colaboraram com Tony Conrad, o músico vanguardista nova-iorquino (e vídeo-artista e realizador de cinema experimental) no celebrado Outside the Dream Syndicate. No mesmo ano da colaboração com Conrad editam Faust IV e, dois depois, a Virgin recusa-se a lançar o álbum seguinte. A banda separa-se pouco depois. Para trás ficava a memória dos concertos e das reacções extremas que provocavam. “Pessoas a dançar à volta de fumo selvagem, entre faíscas e odores intensos. Nunca gerámos violência, à parte algumas cadeiras e mesas batucadas para manter o ritmo. Depois dos concertos, testemunhávamos muitas emoções entre a audiência: lágrimas de felicidade, olhos iluminados, sorrisos abertos”.

Quase duas décadas depois, em 1992, reapareceram. Jean-Hervé, Zappi e Hans-Joachim Hirmler - o trio acabaria por separar-se, com Hirmler a abandonar para liderar os seus próprios Faust. Nesta segunda vida, multiplicaram-se as colaborações (Chris Cutler, Dälek, To Rococo Rot, Jim O ‘Rourke, Nurse With Wound) e aumentou a discografia. Fresh Air, o álbum que editaram este ano, foi construído ao longo de uma digressão pelos Estados Unidos, em 2016. O tema título, longo de 17 minutos, num crescendo lento que se torna mais e mais sufocante, surge logo a início e dá o tom. “We need, we need, we need fresh air! That’s all we need. Fresh air!”, dizem, cantam, gritam. É um grito de libertação que ecoará na noite de Barcelos.

Então as betoneiras?, perguntam os caros leitores. Jean-Hervé refere que o interesse nelas é sonoro e simbólico. Chamou-lhes “construtoras de civilizações” - “tão humildes, tão poderosas, tão úteis, tão maltratadas” - e deixou o simbolismo para os participantes no workshop que a banda promoverá na manhã de sábado, dia 22, no Teatro Gil Vicente. Eles preferem assim. Em 2010, Jean-Hervé Peron dizia-nos que “a primeira regra dos Faust é não existirem regras". A segunda, "nunca revelar o que faremos em palco no próximo concerto”. Em 2017, já devíamos saber que resposta esperar quando tentamos saber mais sobre a colaboração com os GNOD. “Nenhum de nós tem um plano. Estamos abertos a todo o tipo de fontes de som, a todos os tipos de expressão”. Como é que era mesmo? Dadaístas diletantes? Isso.

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