A criatura mutante s.21

Tal como o animal que lhe está no centro, o novo filme do coreano Bong Joon Ho é uma manta de retalhos construída em laboratório. Não adianta grandemente ao que conhecíamos do cineasta, mas mantém intacta a sua personalidade.

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É um bicho estranho e bizarro aquele com que o sul-coreano Bong Joon Ho sucede ao (insuficientemente visto) Snowpiercer­- O Expresso do Amanhã (2013). Provavelmente por reacção aos problemas de distribuição e à guerra de nervos com Harvey Weinstein de Snowpiercer­- O Expresso do Amanhã , Bong aceitou entregar-se aos bolsos largos da Netflix e à garantia do lançamento global simultâneo nos ecrãs caseiros em troca da promessa de liberdade criativa total. E é difícil ver como um objecto tão contra as gavetas tradicionais da narrativa (mesmo para os padrões genuinamente estonteantes do coreano) teria conseguido existir de outra forma.

Prolongando as temáticas ecologistas e anti-capitalistas e o papel-chave do núcleo familiar patentes na sua obra anterior, Okja é uma espécie de remake psicadélica-colorida-aguada desse seminal The Host­ - A Criatura (2006). Mas é também um cruzamento profano da mais violenta e ácida sátira ao capitalismo e ao consumismo moderno com o conto de fadas pastoral para crianças; do burlesco pioneiro do cinema mudo com o mais grotesco dos surrealismos e o mais básico do cartoon oriental de animação limitada.

No centro do filme está a relação entre Mija, uma órfã criada pelo avô agricultor numa remota província coreana, e Okja, a “super-porca” “concebida” por uma multinacional que o avô criou de modo “natural” e “biológico”. Quando a multinacional vem “repossuír” Okja, sagrada “melhor super-porco” do mundo, e levá-la para Nova Iorque, Mija recusa-se a abandonar o animal à sua sorte e cruza-se com uma brigada de activistas dos direitos dos animais disposta a ajudá-la e, no processo, a denunciar toda a atitude da multinacional como mera “cortina de fumo” para lançar areia para os olhos dos consumidores. É verdade: Bong já fez isto antes, já o fez melhor, e parece ter aqui “aplainado” algumas (mas só algumas) das arestas cortantes dos filmes anteriores (como se a tal liberdade criativa que a Netflix lhe permitiu acabasse por ter criado inesperadas contenções ou restrições).

Nesse mesmo movimento, contudo, não há como não saudar a contínua vontade do coreano de mandar às urtigas as divisórias entre géneros e abordagens. Okja ora quer ser Spielberg na sua fase para miúdos ora assume uma pose de sátira visionária-contra-cultural da década de 1970, tem qualquer coisa de cinema para miúdos saído de uma dimensão paralela ou de um outro tempo anterior à moderna correcção política, que não trata os miúdos como parvos mas ao mesmo tempo parece claramente demasiado adulto.

Pode não se gostar, mas é impossível negar a sua identidade desafiadoramente pessoal e inequívoca numa paisagem de cinema cada vez mais formatado, e a sua procura de uma gravidade temática ou de uma moralidade humanista que passe intacta pelo filtro do entretenimento. Continuamos a preferir The Host­ - A Criatura ou Snowpiercer­- O Expresso do Amanhã , mas Okja, apesar da sensação de passo ao lado, não desmerece dos pergaminhos de Bong Joon Ho.

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