A ópera livre e pouco matemática da Mala Voadora

A Mala Voadora junta-se ao maestro Pedro Amaral e à Orquestra Gulbenkian para criar uma relação entre teatro e ópera. Beaumarchais diverte-se a desmanchar em palco a trilogia de Fígaro.

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Assistimos à gravação de um álbum dedicado a Beaumarchais, os cantores a ocuparem as suas cabines de captação de voz Filipe Ferreira

Jorge Andrade ainda se questionou se Tiago Rodrigues estaria a espiá-lo atrás de alguma duna. Estava o fundador da companhia Mala Voadora de férias numa praia algarvia, há cerca de dois anos, quando recebeu uma chamada do director do Teatro Nacional Dona Maria II averiguando do seu interesse e da sua disponibilidade em avançar com uma ópera em parceria com a Orquestra Gulbenkian, a partir de um texto que “fosse icónico tanto do ponto de vista da ópera quanto do teatro”. Acontece que o telefonema interrompera a sua leitura de um volume com a trilogia de Beaumarchais composta por O Barbeiro de Sevilha, As Bodas de Fígaro e A Mãe Culpada, textos escritos no século XVIII, elevados a clássicos e firmados bem fundo no cânone operático na relação com a música de Mozart e Rossini. Jorge tinha comprado o livro um pouco por acaso, depois de atraído pela curiosidade para o interior de um alfarrabista em Praga, onde desencantou o tomo.

Claro que Tiago Rodrigues não estava atrás de uma duna nem Jorge Andrade se deu ao trabalho de olhar à sua volta para se certificar de que isso não era mesmo verdade, mas a coincidência apresentava-se tão perfeita que seria quase criminoso ignorar essa irrecusável tentação. De volta ao trabalho, reunido com Tiago Rodrigues e Risto Nieminen, director da Gulbenkian Música, Jorge Andrade falou-lhes “daquilo que entendia da trilogia de Fígaro”, explicando que lhe “interessava aquela fase em que as peças foram escritas, próximas do período da Revolução Francesa, mas também a própria vida de Beaumarchais, que estava sempre bem com deus e o diabo”. “Gostei sobretudo do ponto de vista formal que ele emprestava aos textos, dando protagonismo aos criados, mais do que propriamente por apresentarem uma ideia revolucionária.”

Fígaro, aliás, mexe-lhe com os nervos quando defende uma dívida de fidelidade na relação com os patrões, mas em Beaumarchais, o espectáculo da Mala Voadora em cena no Dona Maria II até 2 de Julho, com música do compositor e maestro Pedro Amaral, não coloca exactamente os textos em palco. Em vez disso, diverte-se com as palavras do autor francês, brinca a partir de um dispositivo cénico em que fica desde logo claro que assistimos à gravação de um álbum dedicado a Beaumarchais, com os cantores a ocuparem as suas cabines de captação de voz, a orquestra a acompanhá-los e um grupo de técnicos de som (os actores habituais nas produções da Mala), trajados com t-shirts de grupos de hard rock e heavy metal, deslocando-se em cadeiras com rodinhas entre a mesa de som e o armazenamento de minis (falamos de cervejas, sim) na vizinhança.

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Filipe Ferreira

Os técnicos de som implementam o diálogo que Jorge Andrade pretendia explorar entre ópera e teatro. A sua ideia não passou nunca por se dedicar a “um trabalho épico de oito horas para pôr tudo aquilo em cena”. Pedro Amaral chama-lhe, na verdade, “um espectáculo de teatro com partes de ópera”. E uma vez que o compositor pediu que pudesse ser ele a encarregar-se do libreto – uma vez que a selecção das partes do texto lhe permitiam pensar na sua passagem a música –, os dois foram negociando “que buracos ficariam no texto” do autor francês que permitissem a Jorge meter por ali as mãos e não se limitar a criar meia-dúzia de situações encenadas que acompanhassem a partitura.

Os equívocos e conflitos que alimentam a trilogia são transportados para Beaumarchais como matriz para o relacionamento entre cantores e orquestra, de um lado, e os técnicos de som, do outro. E a palavra é transferida das vozes dos cantores e das suas personagens para os técnicos quando um dos intérpretes, tipicamente susceptível, não admite que do outro lado da régie os técnicos possam estar na risota enquanto ele empresta uma desmesurada carga dramática, tão inflamada e brilhante que se diria merecedor de uma estátua plantada ali mesmo no estúdio. E, como bom cantor de ópera estereotipado, perante os risos, responde com uma birra, abandona a cabine de som e afasta-se à espera de ser apaparicado e convencido a regressar ao seu lugar. Enquanto isso, os técnicos discutem que solução de emergência poderia ter de ser accionada caso a estrela não cedesse à bajulação e que redistribuição de papéis teria de acontecer para a gravação não ser cancelada.

Aquilo que rapidamente acontece é que os técnicos se entusiasmam a recapitular a teia de ligações entre Fígaro, a condessa, Bártolo, Bégearss ou Rosina, empossam-se das personagens e vão preenchendo os grandes espaços a que a música não chega. “Do ponto de vista teatral interessava-me trabalhar uma grande liberdade que contrastasse com o rigor matemático da música”, descreve o encenador. E é assim que as personagens que antes estavam na voz dos cantores podem, de repente, aparecer reclamadas pelos técnicos que lhes dão vida sem se levantar das cadeiras de rodinhas nem interromper o vai-vém a caminho das minis; e é assim que se apressa o relato da história de alcova em que importa explicar quem é o querubim, personagem que há-de engravidar a condessa, facto essencial para o drama final d’A Mãe Culpada, e essencial para justificar a presença do vilão (ou do cantor que lhe dará voz) na sala de espera do estúdio. Ainda as gravações não passaram d’O Barbeiro de Sevilha e já o malfeitor da terceira peça aguarda a sua vez – até porque o compositor quis saltar As Bodas de Fígaro, por ser “impossível ombrear com Mozart” e ser uma obra que dirigiu vezes suficientes para lhe ser difícil apagar a partitura clássica.

Como Jorge Andrade “não queria ter aquela coisa à Fernando Pessoa de liceu, com uns cubos e actores vestidos de preto e um narrador que explica” a acção, insere um caos em Beaumarchais, dá balanço a personagens que são nomeadas e quase reduzidas a um par de situações de equívocos e embaraços, uma mãe que quase desposa um filho e só é travada por uma singular marca que este tem nas costas, e em que as frases distendidas da ópera são, aqui e ali, substituídas por uma narração à beira da vertigem e uma algazarra em que surge até um homem-mesa barroco para manter viva a distribuição de álcool.

Uma história de instabilidade

A música, ainda que sem esta dimensão desabrida, alastrava também pelo palco de Moçambique, a anterior criação da Mala Voadora. Em particular, manifestava-se através de um conjunto virtuoso, caricatural e hilariante de spots publicitários de uma marca de concentrado de tomate produzidos para vários mercados europeus e asiáticos. Os spots foram co-criados por Bruno Huca, um dos actores que vemos agora feito Querubim em Beaumarchais, cujas qualidades vocais o tornam indispensável para cada delírio musical da companhia. Huca já andava no radar da Mala Voadora desde 2009 e do espectáculo O Duplo, quando ao lado de Ana Brandão construía a banda sonora para um conjunto de excertos de filmes em que personagens eram vistas a rondar a morte e depois a esvair-se por fim.

O Duplo insere-se numa fase particular do trabalho da companhia formada em 2003 por Jorge Andrade e pelo cenógrafo José Capela – dupla que se mantém o núcleo duro da companhia –, uma fase em o que o seu teatro resultava da contaminação por elementos do quotidiano. “Tinha ideias para espectáculos que me ocorriam enquanto andava pela rua”, sintetiza o actor e encenador. “Eram espectáculos que partiam de materiais que não eram propriamente do teatro e aquilo que fazíamos era transportar isso para a cena e ver como é que aquilo ganhava uma espectacularidade, ao mesmo tempo que reequacionávamos a forma como entendíamos – e isto pode parecer piroso – o mundo.”

Nesta altura, bibelôs (Chinoiserie), selos (Philatélie) ou um livro com os 100 discursos mais importantes do século XX (O Decisivo na Política Não É o Pensamento Individual…), tudo era matéria potencialmente estimuladora de uma passagem à cena. “O Decisivo aconteceu porque estava numa feira do livro no Algarve, vi dois calhamaços – ainda por cima mal traduzidos – sobre os discursos e pensei que podia resultar em algo engraçado. Depois de ler o primeiro volume já não sabia quem tinha dito nem defendido o quê e achei que podia levar a um exagero de misturar tudo até não se perceber onde acaba um discurso do Mussolini e começa um do Dalai Lama, transformado num grande comício-espectáculo.”

Terá sido o segundo período na vida da Mala Voadora, formada depois de Jorge Andrade abandonar o Teatro da Garagem, onde tinha passado oito anos como actor e de concluir que a vida de freelancer não se adequava à forma como gostava de estar nos projectos – ele achava que fazia tudo quanto lhe pediam, mas era acusado de não ceder um milímetro, confessa. Daí que, para evitar fazer “uma Garagem 2”, por ser uma experiência demasiado intensa e próxima, Jorge começou por convidar outros encenadores para dirigirem os seus espectáculos: Rogério de Carvalho num dos blocos de Trilogia Strindberg (em que o actor arriscava também a direcção), João Mota em Zoo Story, de Albee, e Miguel Loureiro para o monólogo de Koltès A Noite Mesmo Antes das Florestas.

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Orquestra e técnicos de som deslocando-se em cadeiras com rodinhas entre a mesa de som e o armazenamento de minis Filipe Ferreira

Ainda em 2004, terminando esta troca de socos inicial com pesos pesados da dramaturgia moderna e contemporânea, Jorge Andrade assinava aquela que classifica como a sua “primeira encenação independente”. Os Justos, de Camus, beneficiaria de um subsídio da DGArtes, mas seria abanado pelo curso na Gulbenkian ministrado pelos Third Angel que Jorge frequentou. “Depois do curso pensei ‘Porra, já não me apetece nada fazer aqueles Justos porque o meu olhar já não é aquele. Só queria não ter o subsídio para não ter de fazer isto’. Mas quando voltei a pegar no texto já o fiz numa abordagem completamente diferente.” E diferente porque perguntando-se que raio percebiam uns actores portugueses de um grupo de revolucionários na Rússia czarista que preparavam um atentado contra o grão-duque, sabendo que disto pouco sabiam, os actores passaram a levar para palco a sua tentativa de pegar no texto, “da mesma forma que Os Justos do Camus tentavam levar a cabo o atentado”.

Este sentimento de compromisso com um texto que, de repente, parecia um castigo ecoa um outro momento fundamental no percurso da Mala Voadora. Depois de cativar o Centro Cultural de Belém para uma obra de Alan Ayckbourn que tinha lido há uns tempos, voltou ao texto e só se conseguiu pensar “Não quero nada fazer esta merda, agora o que é vou fazer com isto?” Na verdade, o que o seduzira – como confessa acontecer-lhe sempre com Ayckbourn – era sobretudo a ideia cénica. Manteve o título (Casa & Jardim, 2012) e encomendou ao dramaturgo inglês Chris Thorpe – com quem a Mala tem colaborado regularmente – um novo texto inspirado por teorias do fim da História.

Esse gesto parece sintomático de uma certa tendência da Mala Voadora para armadilhar o próprio caminho. Escolhendo textos de que logo se querem livrar, voltando clássicos (Shakespeare, Pirandello) do avesso, atirando a biografia para a primeira linha ou – como aconteceu agora com Beaumarchais e deverá repetir-se na criação de Amazónia, daqui por uns meses – com Jorge Andrade começando por escrever uns textos muito verdes, depois retocados com os actores até ganharem uma forma definitiva. Tanto quanto pode haver algo de definitivo numa companhia que é feita de uma instabilidade celebrada como condição de sobrevivência.

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