O homem louco

A ideia de fazer da NATO uma espécie de Santa Aliança cristã para combater o islão radical é uma boa forma de começar a dar cabo dela.

Segundo o diário de um dos mais próximos assessores de Richard Nixon, H. R. Haldeman, num final de tarde, quando os dois caminhavam após um intenso dia de trabalho, o então Presidente dos EUA virou-se para ele e disparou: “Eu chamo-lhe a teoria do homem louco, Bob. Quero que os norte-vietnamitas pensem que atingi o ponto em que posso fazer qualquer coisa para acabar com a guerra. Vamos espalhar que Nixon é obcecado pelo comunismo, não há nada a fazer quando perde a cabeça e ele tem a sua mão no botão nuclear. Então, em apenas dois dias, o próprio Ho Chi Minh irá a Paris implorar por paz.”

A visita do Presidente dos Estados Unidos à Europa para participar na sua primeira cimeira da NATO em Bruxelas, além de uma visita ao papa Francisco e de um encontro dos G7 na Sicília, não teria nada de especial, se ele não fosse Donald Trump. Mas é. E, por isso, não é exagerado colocar a questão no plano da própria existência da Organização do Tratado do Atlântico Norte no futuro. Pelo menos tal como a conhecemos hoje.

Como já foi referido várias vezes, Donald Trump é sobretudo um nacionalista jacksoniano. E estes detestam tudo o que a NATO representa: o multilateralismo, as alianças permanentes no exterior, a defesa comum. Para eles, tudo isto são amarras ao poder e à liberdade de acção da América no exterior, tornando-a mais insegura e vulnerável. Coerentemente, Trump tem vindo a criticar a organização, bem como as alianças bilaterais com o Japão e a Coreia do Sul, pelo menos desde finais da década de 1980. Para ele, estes aliados são free riders que querem andar à boleia da segurança oferecida pelo Ferrari norte-americano sem pagar por ela. Pior ainda: fazem-no, ao mesmo tempo que aproveitam isso para tirar vantagens económicas à custa dos EUA, traduzidas nos enormes défices comerciais do país com, por exemplo, a Alemanha e o Japão.

De um ponto de vista estritamente económico, o Presidente dos Estados Unidos tem em parte razão. Os europeus não contribuem suficientemente para a chamada "comunidade de segurança" pluralista do Atlântico Norte (e o mesmo acontece com os japoneses e os sul-coreanos na Ásia-Pacífico). Mas a NATO não é uma transacção económica e muito menos um exercício de contabilidade de mercearia de bairro. Ela é, antes de tudo, um interesse vital dos EUA. Foi por essa razão que os líderes políticos norte-americanos do pós-1945 decidiram criá-la, contrariando uma longa tradição que vinha de George Washington de não fazerem alianças permanentes no exterior. Foi também esse o motivo pelo qual decidiram mantê-la após o fim da Guerra Fria, quando já tinha desaparecido a principal ameaça que esteve na base da sua criação — a URSS — e em plena unipolaridade que, segundo a teoria das relações internacionais, retira incentivos a este tipo de alianças, pois permite ao poder unipolar dispensar todos os outros. Como escreveu James Goldgeier, após 1991, “se a NATO não existisse, talvez não tivesse sido criada”.

Os Estados Unidos têm um único interesse nacional fixo: impedir a hegemonia de uma potência, ou aliança de potências, nos continentes europeu e asiático. A NATO foi criada para impedir essa hegemonia na Europa. Fosse a soviética, ou fosse mesmo a alemã. Como referiu o Lord Ismay, ela surgiu para “manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães em baixo”. Isso continua a ser válido ainda hoje. Acresce que a Organização do Tratado do Atlântico Norte se transformou no “braço armado” da ordem internacional liberal (a ordem americana), sendo a única instituição capaz de manter o respeito pelas normas, as leis e as instituições que regulam a relação entre os Estados. E fá-lo com pelo menos alguma legitimidade, uma vez que o consegue através da acção multilateral e sem assustar todos os outros — a alternativa, bem pior, é a acção unilateral dos EUA.

Se a NATO é do interesse nacional da América, é de esperar que Donald Trump mude de opinião acerca dela — como mudou em relação a outros assuntos (China, NAFTA, acordo nuclear com o Irão, etc.) — e passe a dizer não só que ela já não é obsoleta — como já disse — mas é mesmo a mais moderna e a maior aliança que o mundo alguma vez conheceu. Todavia, há dois problemas que vão levar a que isso provavelmente nunca aconteça. O primeiro é que a ideia da criação da organização não foi uma ideia de Trump e para ele tudo o que não é feito por si é mau. O segundo é que o ódio a este tipo de alianças está colado à pele dos nacionalistas jacksonianos, faz parte do seu corpo e da sua identidade e nada os fará mudar.

Mas há ainda outro problema talvez mais grave. É que, ao contrário de Nixon, que fazia de louco mas não era e apenas pretendia levar os norte-vietnamitas à mesa das negociações para acabar com a guerra do Vietname, Donald Trump parece cada vez mais que não faz de louco: ele é um homem louco. E acabará por, de uma maneira ou de outra, destruir a NATO, ou pelo menos enfraquecê-la de tal maneira que, mesmo continuando a existir, não serve para grande coisa. Questionar o seu Artigo 5.º ou a ideia de fazer da Organização do Tratado do Atlântico Norte uma espécie de Santa Aliança cristã para combater o islão radical é uma boa forma de começar a dar cabo dela.

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