Uma questão de vida e de morte

Se Paraíso não é um filme para deitar fora, também não é nele que mataremos saudades do melhor Konchalovski.

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Paraíso: a enésima reiteração do “drama de campo de concentração”
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Depois do período soviético nos anos 60 e 70, que deu os títulos cruciais da sua obra (filmes como O Primeiro Mestre ou Siberíade), e do período americano nos anos 80 e 90 (de desfecho porventura inevitável, mas que deu alguns óptimos filmes como Os Amantes de Maria ou Comboio em Fuga, sem esquecer o muito divertido Tango & Cash com Stallone e Kurt Russell), Andrei Konchalovski vive hoje, quando está perto de se tornar octogenário, a terceira e mais errática fase da sua carreira. Uma fase de que Veneza (o festival, não a cidade) tem sido o principal tonificante, premiando regularmente os seus filmes (Paraíso trouxe um Leão de Prata da edição do ano passado), mesmo se o impacto pós-festival deles fique longe do que já aconteceu em épocas mais felizes.

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É fácil pensar em Konchalovski como um “apátrida”, esteticamente pelo menos: formado na velha tradição do cinema soviético, trocou-a pela aventura americana (onde ainda a aplicou de modo singularmente harmonioso, revejam-se alguns dos filmes acima citados), e quando essa aventura acabou já não havia “cinema soviético” aonde voltar, antes a ambição industrial e comercial do cinema da nova Rússia. Pensamos nisso a ver este estranho Paraíso, e sobretudo a partir da sua apátrida protagonista, uma aristocrata russa (interpretada por Yulya Vysotskaya, mulher de Konchalovski na vida real) que como tantos “russos brancos” se exilou em França e apanhou em cheio com a Ocupação nazi.

Activamente envolvida com a Resistência no salvamento de crianças judias, mas também com um oficial nazi com quem antes da guerra vivera um romance que depois é reatado em circunstâncias extremas (quando é deportada para um campo de concentração), é um percurso forçosamente cheio de tráficos e compromissos, narrado como numa apologia: como sucedia no clássico A Matter of Life and Death de Powell e Pressburger, o acesso ao Paraíso (o celestial, propriamente) tem a mesma carga burocrática de um controlo de fronteiras, e a acção de Paraíso, sempre numa estrutura episódica, é entrecortada por depoimentos (que rapidamente percebemos serem post-mortem) dos três principais protagonistas, a condessa (é uma condessa), o nazi, e o polícia francês que dá caça à Resistência moralmente aliviado pelo facto de não trabalhar para a Gestapo (ele trabalha para a polícia, se a polícia trabalha para a Gestapo é uma questão que convenientemente o ultrapassa).

Não é preciso muito para adivinhar, sem spoiler, qual das personagens será acolhida no Paraíso — em cena estranhíssima que inclui uma voz do além e um breve clarão salvífico. Em todo o caso, esta moralidade esguia, este percurso sacrificial, e sobretudo esta ausência de valores políticos tradicionais (mormente, o patriotismo, aqui totalmente seco: a condessa não luta certamente pela URSS) mescalda na religiosidade quase caricatural do exame de admissão ao Paraíso, criam as ressonâncias mais estranhas do filme, sobretudo quando (e isso é trabalho para a cabeça do espectador mais do que trabalho do filme) são articuladas com a política europeia contemporânea, a questão dos refugiados, o expansionismo russo, e um longo et cetera.

Porque depois, e apesar do preto e branco a simular imagens de arquivo ou objets trouvés, com rasuras na imagem e jump cuts como nos fins das bobines de película (as cópias de Paraíso são digitais mas foi filmado, pelo menos parcialmente, em 35mm e em 16mm), que também parece uma evocação do preto e branco dos filmes soviéticos dos anos 60 (portanto, dos inícios de Konchalovski), Paraíso assemelha-se a uma variação menor do Black Book de Paul Verhoeven, em que pensamos no momento em que a protagonista puxa a saia e abre as pernas para se oferecer ao polícia francês (a amoralidade como processo para garantir uma existência moral), e à enésima reiteração do “drama de campo de concentração”, dada aqui num desejo de realismo que parece sempre singularmente fora de tom, ora histérico ora pouco convincente, em qualquer dos casos sem nenhuma perspectiva especialmente interessante para além dos clichés de representação dos campos. Enfim, se Paraíso não é um filme para deitar fora também não é nele que mataremos saudades do melhor Konchalovski.

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