Loulou já não mora aqui

Huppert e Depardieu, sexagenários, são muito diferentes e ao mesmo tempo semelhantes ao que eram quando encarnaram a beleza da juventude. Como em Loulou, de Pialat.

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Huppert, Depardieu (e Pialat), Loulou

Todos os filmes de ficção tendem a tornar-se “documentários” com a passagem do tempo, diz uma célebre e justa fórmula, mas a passagem do tempo, nalguns casos, nem é necessária para que a ficção se torne um documento de algum tipo. Por exemplo, sobre os actores. Temos esta sensação, muito forte, em Vale de Amor, e do trabalho que faz com as figuras, rostos, corpos, vozes, de Isabelle Huppert e Gérard Depardieu, hoje sexagenários, muito diferentes do que foram mas ao mesmo tempo muito semelhantes ao que eram em épocas em que puderam encarnar o viço, a anarquia, a insolência, e sobretudo a beleza, da juventude. Tornaram-se intensificação deles mesmos, daquilo que foram num filme como Loulou, de Maurice Pialat, que em 1980 os juntou num par romântico anti-romântico, para uma história de amor interclassista (ela, burguesinha intelectual, ele, rufia dos bairros populares, quezilento e beberrão), tempestuosa e à beira do caos.

Em Vale de Amor, o filme de Pialat está ao fundo, a sua memória pelo menos, ou se calhar como algo que é apenas um eco, um assomo semifantasmático do lastro que estas personagens — estes actores — carregam e exibem. São os mesmos que eram em Loulou: Huppert e aquela impassibilidade imprevisível, que pode sempre desfazer-se em fracções de segundo, o corpo franzino compensado pela dureza do olhar; Depardieu e o seu corpanzil, os gestos largos vividos numa espécie de inconsciência física, ou a sua simulação. Mas já não são os mesmos: o rosto de Huppert é mais anguloso, perdeu os traços redondos e quase adolescentes dos seus vinte e poucos anos, o corpo de Depardieu cresceu até à disformidade, o pescoço desapareceu no meio daquela massa toda, o ventre inchou até atingir proporções inenarráveis (depois de Welcome to New York, de Ferrara, Vale de Amor é outro filme fascinado com a “evidência física” de Depardieu). Têm mais 37 anos do que tinham no filme de Pialat, em suma, e o filme de Nicloux não deixa de ser habitado pela ideia de que se trata, também, de um relatório sobre o que o tempo lhes fez.

Já em Loulou, Huppert, numa daquelas cenas arrancadas ao improviso trabalhoso que resulta de pôr dois actores a conviverem em intimidade física até que o “trabalho” desapareça, dizia a Depardieu: “És tão pesado, estás a esmagar-me as maminhas.” Revisto hoje, é um aparte profético, porque o Depardieu de 37 anos depois deve ser triplamente mais “esmagador”. Rever Loulou leva coisas para o visionamento de Vale de Amor; mas o filme de Nicloux também traz coisas de lá, como um filme post. Ficávamos, no filme de Pialat, no estranho e apressado luto pela criança que Huppert abortava, entramos, em Vale de Amor, sob o signo do luto por um filho morto. São os mesmos e não são: porque em Loulou, filme de euforia selvática, via-se o princípio da chicotada mas prevalecia a abertura de um mundo de possibilidades, e o filme acabava nessa abertura. Vale de Amor fecha, é um filme sobre a chicotada, a vida passou e agora estamos aqui. Quem já não está é Loulou.

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