Manhattan, RFA

Alice nas Cidades é o primeiro grande embate de Wim Wenders com os Estados Unidos, enquanto paisagem material e paisagem ideológica — de que faz parte o cinema.

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As cenas americanas da primeira parte fazem pensar na influência que este filme terá tido o cinema americano “independente”
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Recuamos dez anos em relação a Paris, Texas mas, e embora se trate de um título muito menos popular, Alice nas Cidades conserva alguns ecos importantes daquilo que Wim Wenders desenvolveria no filme de 1984. Aquela segunda parte (de Paris, Texas) em que Harry Dean Stanton viaja com o miúdo, por exemplo: aqui a relação, em viagem constante, dum adulto (o híper-wendersiano Rudiger Vogler) com uma criança (Yella Rottlander, que viria a ser uma inspiração para o Yella de Christian Petzold, muitos anos depois) é o elemento estrutural decisivo. Mas não só isso, porque Alice nas Cidades é o primeiro grande embate de Wenders com os Estados Unidos, enquanto paisagem material e paisagem ideológica — de que faz parte o cinema: o Young Mr Lincoln de John Ford, suprassumo do cinema americano idealista, é abundantemente citado (sem contar com todas as outras inúmeras alusões à cultura popular americana).

Por outro lado, depois de A Angústia do Guarda-Redes Antes do Pénalti e de A Letra Escarlate (adaptando, made in germany, Nathaniel Hawthorne), Alice nas Cidades é o filme que plenamente traz para a obra de Wenders os temas da errância e da deriva, e que os transmite quer ao método de fabrico (com larga aceitação do improviso) quer à forma narrativa: muitas das bases do futuro cinema de Wenders (por exemplo Ao Correr do Tempo, de 1976) são aqui lançadas, e a vários níveis.

As cenas americanas da primeira parte — na beleza escura e coçada do preto e branco de Robby Muller — fazem pensar na influência que este filme terá tido sobre algum do mais importante cinema americano “independente” dum futuro próximo. Pensamos bastante em Jarmusch, por exemplo, ele que até foi apadrinhado (e objectivamente apoiado) por Wenders, e talvez não seja coincidência absoluta que este filme do alemão abra com um plano (um avião a cruzar o céu) muito semelhante ao plano com que se concluía o Stranger than Paradise do americano.

Em todo o caso, esteticamente, a dimensão travelogue, dir-se-ia “documental”, fotograficamente documental, de Alice nas Cidades é um valor que não envelheceu uma ruga, bem pelo contrário — de Manhattan à Alemanha Federal andamos sempre por terras “mais estranhas que o paraíso”, mais em continuidade do que em ruptura (pois a influência americana na cultura da Alemanha do pós-guerra é um dado importante no registo do filme). Embora o texto seja menos preponderante do que noutras ocasiões, e o diálogo bastante mais esparso, também se deve mencionar que este foi mais um passo no relacionamento de Wenders com Peter Handke, baseando-se o filme, longinquamente (ou como um “reflexo”), num romance do escritor que aludia à sua experiência de pai solteiro.

Esse eixo, ainda que seja apenas mais um elemento do filme, é de uma doçura inexcedível (ainda sem a carga dramática que teria em Paris, Texas), assente na química entre o adulto Vogler e a vivíssima Yella. É por eles os dois que Alice nas Cidades oscila constantemente entre o “fundo” (a paisagem) e a proximidade, entre a exterioridade e a interioridade (as muitas janelas que há no filme), para ficar como um filme de momentos, de gestos, roubados “ao correr do tempo”.

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