O mundo quebrado de Shyamalan

Em Fragmentado M Night Shyamalan tem algumas ideias sobre como voltar a cair em boas graças, e são as mesmas que Hollywood põe em prática há décadas: a auto-reciclagem.

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Fragmentado: um filme-pretexto, um preâmbulo a outra coisa
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Shyamalan anda na mó de baixo, incapaz de voltar a acertar, sobretudo depois dos sensacionais flops de The Last Airbender e After Earth, naquela tecla que fez tanta gente render-se aos seus primeiros filmes. Parece ter umas ideias sobre como o fazer, Fragmentado sugere-as, mas já lá iremos porque isso tem a ver com o final do filme.

Como o precedente A Visita, Fragmentado tem a seu favor a pequena escala em que se coloca — enquanto filme de terror “ilusionista” e quase série B — por oposição à grandiloquência e à espécie de messianismo naif dos seus filmes mais célebres. Não há mais do que uma mão cheia de personagens relevantes, embora uma delas (a de James McAvoy) se desdobre em vinte e três personalidades diferentes (e no final uma vigésima-quarta, produto cumulativo das outras todas). McAvoy é o vilão “fragmentado” do filme, raptor de um grupo de miúdas adolescentes que mantém captivas com propósitos nunca claramente explicitados mas obviamente sinistros. Ao mesmo tempo, é o paciente de eleição da psiquiatra Betty Buckley (que Shyamalan mantém de A Visita e faz bem: é uma óptima actriz), que tem ideias pouco ortodoxas sobre como considerar os casos esquizofrénicos (mesmo que, salvo erro, a palavra “esquizofrenia” não seja pronunciada em todo o filme), vendo neles indivíduos que libertaram o potencial do cérebro humano (ou conversa que o valha). Começa por aí a delinear-se o tema, caro a Shyamalan, das personagens “escolhidas”, aquela espécie de “jansenismo” sincrético onde tudo é predestinação e toque de uma graça (ou desgraça) qualquer. Que é reforçado na estrutura narrativa, também típica dele: ao mesmo tempo que evolui a história “em directo”, uma série de flash-backs leva-nos ao passado de uma das miúdas raptadas, de uma forma que cedo se percebe (como acontecia por exemplo em Sinais) que tenderá para o “alinhamento”, entroncando o tempo passado e o tempo presente como se esse encontro estivesse predestinado. E estava, claro, mas o problema de Shyamalan é que — mais uma vez — essa predestinação não se faz sentir como um poder transcendente e misterioso (não é bem Bresson, aqui entre nós) mas como o simples fruto de uma engenhosa (e vá lá, minimamente sofisticada) construção de argumento. Extremamente habilidoso e intuitivo, a Shyamalan falta, por sua vez, o toque de uma graça qualquer que eleve os seus filmes acima do simples brilhantismo da sua execução. “Universo”, de certa forma, ou pelo menos uma outra densidade. Podia ser um grande naif, um grande “primitivo”, mas se calhar a sua habilidade não é assim tão poderosa — é, pelo menos, o que pensamos dele desde O Sexto Sentido, e Fragmentado não dá razões, pelo contrário, para mudar de ideias.

Tanto assim que o seu tour de force — o número de McAvoy, a mudar de registos, sotaques e personalidades de cena para cena — nunca adquire a dimensão dolorosa que devia ter ou que se devia sentir, e se torna mesmo aborrecido, previsível, um pouco exibicionista. E que se acolhe a “revelação” — a identificação entre captor e captiva — com indiferença, num filme que, sobretudo depois do desaparecimento da personagem da invulgar Buckley, se acomoda aos trâmites funcionais do filme de terror claustrofóbico, com o toque shyamalanesco da tangente (a 24ª personalidade) à sobre-humanidade de um super-herói (ou super-vilão). A palavra “broken” (“partido”, “quebrado”, “ferido”) terá um papel especial no desfecho: são os “broken”, física ou psicologicamente, os “especiais”, os “escolhidos”. O que nos leva a um dos filmes de Shyamalan mais aclamados, Unbreakable. Leva-nos a nós e leva ao filme também, que acaba (deixaremos ao espectador a descoberta de como) a anunciar uma sequela desse filme. Fragmentado será então apenas um filme-pretexto, um preâmbulo a outra coisa. Shyamalan tem portanto algumas ideias sobre como voltar a cair em boas graças, e são genericamente as mesmas que Hollywood põe em prática há décadas: a auto-reciclagem. A ver vamos.

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