É esta a política: os sentimentos

Eu, Daniel Blake é um filme indignado com a devastação humana mas com uma delicadeza de olhar que resiste no espaço dos sentimentos e da intimidade. Isso , possibilidade de resistência: as relações íntimas a contrariarem a violência da retórica social - e a retórica do filme de mensagem.

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Eu, Daniel Blake, um pequeno ciclo na Cinemateca e o documentário Versus, A Vida e os Filmes de Ken Loach (Louise Osmond) levam-nos à descoberta do cineasta britânico. Se tem hoje 80 anos e filma há cinco décadas, não é arriscado dizer que o seu cinema está à espera de ser (re)descoberto, e que o homem merece ser revelado. Não porque se desconheçam os filmes, mas porque foram surgindo tapados pela cortina do engajamento e da militância, até mesmo produzindo um certo efeito de automatismo de relojoaria. Dizer que Loach é sempre igual a Loach também é uma forma de o espectador encolher os ombros, desobrigando-se do esforço.

Teremos de fazer um mea culpa pelo enevoamento do olhar e dos sentidos. E voltar a ele, que nos anos 60 na TV, juntamente com os seus companheiros que por aqueles anos entravam pela BBC adentro, aventurou-se por um misto de realismo e de ficção que confundiu enormemente os espectadores e que antecipou as hoje tão apaparicadas “ficções do real”; e que tem sido fiel, orgulhosamente fiel, ao pacto que estabelece com as personagens, o centro irredutível do seu cinema mais do que qualquer pacto com o espectador – por isso, mesmo quando acusado de ser manipulador ou sectário, Loach é insensível a qualquer tendência de espectacularização. É aqui, neste pacto com as personagens, que Eu, Daniel Blake se evidencia como um dos mais comoventes gestos de uma obra.

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Foi para contar a história deste marneceiro de 59 anos de Newcastle que sobreviveu a um ataque cardíaco – não pode trabalhar, segundo os médicos – mas que não vai sobreviver à burocracia do Estado Social, que o cineasta interrompeu a sua reforma (que anunciara por alturas de O Salão de Jimmy, 2014). História de pobres, de um combate ancestral pela sobrevivência, é um filme indignado com a devastação social e humana mas com uma delicadeza de olhar a resistir no espaço dos sentimentos e da intimidade. Isso mesmo, possibilidade de resistência: as relações íntimas a contrariarem a violência da retórica social (e resistência contra a retórica do filme de denúncia e de mensagem política). É essa a política: os sentimentos.

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