Smiley, o agente silencioso

Com um profundo conhecimento da natureza humana, quieto, observador e de grande estrutura moral, George Smiley é o grande protagonista da ficção de John le Carré. E parece ter sido criado por oposição à imagem do pai. Um ideal?

Foto
John le Carré convenceu Alec Guinness a aceitar o papel de Smiley dizendo-lhe que ele tinha os “maneirismos existencias” da personagem

Quando John le Carré imita sir Alec Guinness, o primeiro actor a dar corpo ao velho espião George Smiley na série da BBC A Toupeira, sublinha-lhe em simultâneo características pessoais e da personagem. O ar angélico, a enorme tensão, uma quietude invulgar, o ar extremamente vigilante e atento, a suavidade de maneiras. “Ele tem o instinto de actor, e as suas imitações de pessoas são muito boas”, admitiu Guinness ao biógrafo Adam Sisman que referiu por sua vez ao ípsilon que a imitação de Alec Guiness está entre os seus desempenhos mais brilhantes. 

Em John le Carré, a biography (2015) Sisman conta como John le Carré convenceu Guinness a aceitar o papel de Smiley. “Escrevi para si como um admirador sem limites do seu trabalho desde há muitos anos”, disse-lhe. E disse mais, que ele tinha os exactos “maneirismos existencias” de Smiley. Perante estes argumentos, Guinness aceitou e pediu para se encontrar algumas vezes com o escritor, seria uma ajuda para compor a personagem central da obra de le Carré. O primeiro desses encontros aconteceu num restaurante em Berkeley Square e teve a companhia inusitada de um terceiro elemento, um velho espião reformado, que permitiu a Guinness apurar detalhes. Quando o convidado saiu, Guinness perguntou a Le Carré se todos os espiões usavam botões de punho “de tão mau gosto” e os “botins camurça de um cor de laranja berrante com sola de borracha” eram para “andar furtivamente”? Le Carré respondeu-lhe que deveria ser por questões de conforto já que “a borracha chia”. Foi um almoço histórico: “É matéria para a história da televisão que os botins de camurça de Oldfield, com ou sem solas de borracha, e o seu guarda-chuva apontado para a frente para abrir caminho se tornaram adereços essenciais para Guinness retratar George Smiley, o velho espião apressado. […] O outro legado do nosso almoço foi menos agradável, embora artisticamente ais criativo. A repugnância de Oldfield pelo seu trabalho — e, suspeito, por mim próprio — calou fundo na alma de ator de Guinness, que não deixava de mo recordar quando sentia a necessidade de acentuar a sensação e culpa pessoal de George Smiley; ou, como gostava de dar a entender, da minha”, escreve Joh le Carré no seu livro de memórias O Túnel de Pombos onde Smiley tem muito menos protagonismo do que em toda a sua obra literária. 

Personagem central, secundária ou apenas com uma aparição esporádica, George Smiley está em todos os livros de John le Carré. O escritor não lhe atribui uma biografia específica, completa. A sua identidade vai sendo definida ao longo da obra nos detalhes sobre a sua condição física e psicológica. A primeira vez que sabemos dele, acabara de ser abandonado pela mulher. Seria o primeiro de muitos abandonos. Foi em 1961. David Cromwell estava em Bona, ao serviço do MI6. Numa tarde de chuva quando guiava em direcção ao aeroporto de Colónia para comprar jornais britânicos soube que o seu primeiro romance, Chamada para a Morte, assinado com o pseudónimo John le Carré, fora publicado. “Os críticos mostraram-se benevolentes, embora não tão extasiados como eu esperara. Aprovavam George Smiley. E subitamente aquilo era tudo.” O episódio está em O Túnel de Pombos, e é revelador do quanto essa aprovação seria determinante para a longevidade de George Smiley, o espião que trabalha para o Circus, um departamento dos Serviços Secretos Britânicos que Le Carré cria para a sua ficção. 

Juntando a informação sobre Smiley, temos alguém nascido no início do século XX, filho de uma família de classe média, admirador de literatura alemã do período barroco que em 1928 foi recrutado para trabalhar no Circus. Serviu na Europa Central, África do Sul, Alemanha, Suíça e Suécia. Depois da II Guerra regressou a Inglaterra e casou com uma aristocrata que trabalhava como secretária em Columbus Circus, no mesmo bairro que ele, Lady Ann Sercomb. “É curioso que David tivesse escolhido o nome da própria mulher para mulher da sua personagem principal”, escreve Adam Sisman em John le Carré, a biography, acrescentado que elas não podiam ser mais diferentes. Ann, a primeira mulher de David, era “convencional, monogâmica e de classe média, enquanto Lady Ann é boémia, promíscua e aristocrática”, e avança que a justificação para a escolha pudesse ser o factor desconhecido que Lady Ann representava para Smiley e “por extensão” para David”. 

Apesar de ter elementos dispersos comuns com David Cromwell, Smiley está longe de ser feito à sua imagem. Em Túnel de Pombos, o escritor não desenvolve, percebe-se, pelas suas histórias, que tem pouco do homem silencioso e  moral que é George Smiley. Mas refere Vivian Green, seu mentor e reitor de um dos colégios em Oxford. Foi ele quem lhe “deu a vida interior” de Smiley. Mas é Sisman quem dá pistas. Diz que a consciência de Smiley deriva do “forte intelecto moral” de Green e acrescenta outro detalhe humorístico: se Geen era conhecido por pelo seu modo de vestir excêntrico, Smiley — refere citando Le Carré — “aparenta gastar muito dinheiro em roupas realmente más”.

Parece no entanto haver uma justificação acima de todas para Smiley ser como Smiley é. Vivian Green, como George Smiley, são o oposto de Ronald Cromwell, pai de David. “Talvez Smiley seja um ideal”, admite Adam Sisman, alguém que se põe em causa, com muitas dúvidas, preocupado com as pessoas e com o facto de estar ou não a fazer a coisa certa.

Sugerir correcção
Comentar