Vítor Gaspar: “As regras europeias podem ser utilizadas com flexibilidade”

Sem falar de Portugal, o ex-ministro das Finanças defende em entrevista ao jornal Eco que a Alemanha tem margem para estimular a economia.

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A melhor experiência profissional de Gaspar “ainda está para vir”, acredita o ex-ministro Nuno Ferreira Santos

Não existem “receitas simples de aplicação universal” para gerir crises económicas e financeiras. Quando uma economia está em contracção e a ela estiverem associadas dívidas públicas elevadas, a recessão será maior e mais profunda. Uma recuperação cíclica não chega, por si só, para garantir que um banco se torna rentável de forma saudável. É o desafio de algumas instituições financeiras nos Estados Unidos e na Europa. Na área do euro, alguns países, poucos, têm margem para apoiar a actividade económica: Alemanha e Holanda. No caso alemão, haveria um impulso económico mais imediato, um retorno para o crescimento no médio/longo prazo e um contributo para o dinamismo da zona euro. Há regras orçamentais para cumprir, mas há um “mas”: essas regras prevêem flexibilidade, perante acontecimentos excepcionais ou quando se aplicam reformas estruturais. É Vítor Gaspar em entrevista ao novo jornal de economia online Eco, onde revela que o acontecimento mais inesperado da sua vida foi ser ministro das Finanças.

O antecessor de Maria Luís Albuquerque e Mário Centeno não está a falar de Portugal – não está porque não pode, impedido a isso pelas regras do Fundo Monetário Internacional (FMI), onde é director do departamento de assuntos orçamentais. Uma conversa sobre a zona euro, a conjuntura europeia, os países com e sem margem orçamental e sobre o que podem fazer do lado da receita (impostos, leia-se) e da despesa para promover políticas mais amigas do crescimento económico.

Na zona euro, Vítor Gaspar refere dois países (em 19) com margem orçamental. Primeiro: do que falamos quando falamos de espaço orçamental? “Quando se pode aumentar a despesa ou reduzir a receita sem criar problemas para a sustentabilidade das finanças públicas ou para o acesso do Tesouro ao mercado da dívida”.

A Alemanha, vinca, tem essa margem e o seu caso é “particularmente feliz”. O espaço de manobra está “estimado como sendo cerca de dois pontos percentuais do PIB, no médio prazo. Este valor é importante porque permitia à Alemanha fechar o hiato de investimento público. O FMI considera que avançar nesse sentido seria bom para a Alemanha, porque existiria um apoio à actividade económica no curto prazo e, por outro lado, sendo o investimento feito em infra-estruturas de elevado retorno, numa situação em que as taxas de juro de longo prazo na Alemanha são extraordinariamente baixas, haveria um retorno positivo para o potencial da economia alemã no médio e longo prazo”.

Mas não é a Alemanha, como principal motor da economia europeia, que tem esta margem. Também a Holanda a tem, considera Vítor Gaspar, acrescentando uma nota sobre o que é possível ou não fazer na zona euro: “Existem margens de flexibilidade nas regras europeias que estão associadas a acontecimentos extraordinários, como por exemplo a crise da imigração, a adopção de medidas de reforma estrutural… Em todos estes casos, a flexibilidade é justificada pelo retorno que têm. Isto é, a utilização desta margem orçamental permite resolver problemas prioritários no curto prazo que podem reforçar o potencial de crescimento no médio e longo prazo, contribuindo por isso para melhorar a sustentabilidade da dívida. É essa a lógica destes elementos de flexibilidade”.

E quando o FMI diz que há espaço orçamental para isso na zona euro, explica, já tem em conta o “cumprimento das regras orçamentais europeias e, no caso alemão, também as regras orçamentais nacionais”.

Quando questioanso se as regras orçamentais europeias estão a condicionar a recuperação da economia, o ex-ministro responde: “Julgo que já falamos disso. As regras orçamentais europeias podem ser utilizadas com flexibilidade”.

Impostos indirectos regressivos exigem “compensações”

Em relação aos países sem espaço orçamental, Gaspar diz na entrevista ao Eco que os governos devem ter “políticas orçamentais amigas do crescimento”, usando “a composição da despesa ou da receita para mudarem as prioridades, de forma que afectem o crescimento económico”.

Do lado a despesa, entende, “é apropriado reforçar o investimento público em infra-estruturas” e, no caso de muitos países, no capital humano e na saúde.

Do lado da receita, o director do FMI diz que “a composição pode ser mudada de forma a diminuir a carga associada a impostos com efeitos mais gravosos sobre o crescimento de médio e longo prazo, que são os que incidem sobre os factores de produção, o capital e o trabalho”. Também neste caso Vítor Gaspar não está a falar de Portugal, embora esta seja uma discussão que está na ordem do dia nos debates parlamentares.

À nota de que os impostos indirectos têm efeitos negativos na igualdade, Gaspar responde: “Exactamente. Sendo os impostos indirectos regressivos terá de haver compensações através do aumento da progressividade dos impostos directos ou por via de programas de despesa direccionados para as camadas da população carenciadas. A evidência empírica recolhida pelo FMI sugere que os programas de despesa podem ser extraordinariamente eficazes como forma de combate à desigualdade”.

“O que o FMI recomenda para a área do euro e, mais geralmente, para no mundo é a combinação de políticas monetárias, orçamental e estrutural para afectar simultaneamente a procura e a oferta agregada. E assim suportando a actividade económica no curto prazo e aumentando o produto potencial no médio e longo prazo”, diz noutro momento da entrevista.

Actuar sobre a banca

Em relação ao sector bancário, Gaspar considera que “para uma franja significativa de bancos, quer na área do euro quer nos Estados Unidos, uma recuperação cíclica não será, só por si, suficiente para, no médio prazo, garantir uma rendibilidade saudável desses bancos”. Isto porque “enfrentam alguns desafios em termos do modelo de negócio, dadas as novas realidades do mercado e de regulamentação”.

Segundo o ex-ministro das Finanças, só deve ser injectado dinheiro públicos nos bancos quando estiverem “esgotadas as possibilidades de obter capital através de investimento privado” e, quando se dá esse passo, “o desenho da intervenção é absolutamente crucial”. Não menos importante é o momento em que se actua, acrescenta. “É crucial que a intervenção, uma vez identificada a necessidade, seja feita tão cedo quanto possível. E por último, mas não menos importante, é crucial que tudo isto se faça no quadro de um esquema regulamentar e de supervisão que garanta a estabilidade futura do sistema financeiro”.

Na mesma entrevista, Gaspar respode a perguntas mais intimistas, que fogem à actualidade. Lives of Animals, de J. M. Coetzee, é o seu livro de sonho. Ponte dos Espiões, de Spielberg, o filme recente de que mais gostou. Escolhe o economista António Borges como a pessoa que mais o marcou profissionalmente. E revela que o acontecimento mais inesperado da sua vida foi ser ministro das Finanças. Desde 1 de Julho de 2014 está no FMI. Mas quando lhe perguntam pela melhor experiência profissional pela qual já passou, responde: “Julgo que ainda está para vir”.

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