Colômbia: Nobel para um país partido

O que o Comité Nobel ofereceu à Colômbia foi um gesso para unir os ossos.

1. No dia em que aterrei na Colômbia a primeira vez, 10 de Agosto de 2016, milhares de colombianos estavam nas ruas em protesto. Lutavam contra os novos projectos não-discriminatórios de educação sexual propostos pela ministra da Educação, Gina Parody, homossexual assumida. Acusavam a ministra de promover “a colonização gay” da Colômbia, mas não apenas: usavam a sua orientação sexual para desacreditar as negociações do governo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Parody era um braço direito do presidente Jose Manuel Santos pelo Sim ao acordo que poria fim aos 52 anos dessa guerra. Nesse 10 de Agosto foi o símbolo do que uma parte do país julga ver no actual governo: uma deriva “comunista”, “castro-chavista”, que trai as vítimas da violência e destrói “os valores da família”. O presidente Santos passara os últimos quatro anos a discutir um acordo com as FARC, a taxa de homicídios caíra a pique, em Julho começara um cessar-fogo. Com uma história recente de sete milhões de deslocados e um quarto de milhão de mortos, a Colômbia vivia um momento histórico. Ao mesmo tempo, levantara restrições ao aborto, ao casamento gay, ao direito dos gays à adopção. Tudo somado, um país partido por tanta guerra era também um país socialmente partido nas vésperas da assinatura do acordo de paz. E a metade mais conservadora, anti-gay, anti-aborto, anti-comunista, anti este acordo, tinha um agitador supremo, comandando pelo Twitter: o ex-presidente Álvaro Uribe. Mesmo quem, como eu, estivesse por fora da actualidade colombiana, rapidamente sentiria a tensão no ar, ao aterrar nesse dia em Cartagena das Índias, cartão-postal colonial. Um país com uma herança de séculos de desigualdade e muitas décadas de conflito dividido entre amargura e esperança, passado e futuro. Tudo isso desaguou nos acontecimentos da semana passada, fractura exposta mais do que nunca. O que o Comité Nobel ofereceu foi um gesso para unir os ossos.

2. Sendo um cartão-postal, Cartagena é também uma cidade onde é claro como a pobreza tem a pele escura. Nesses dias de Agosto, os negociadores do acordo (que teve Cuba por anfitriã) andavam ali. E em Cartagena se assinou a paz a 26 de Setembro, com convidados do mundo inteiro e toda a gente vestida de branco, começando por Juan Manuel Santos e Rodrigo Londoño Echeverri, aka Timochenko, o líder dos seis mil guerrilheiros. Durante a cerimónia, ele pediu “perdão ao povo colombiano”, palavras de que muitos precisam.

3. Dois dias depois disso, voltei à Colômbia, desta vez a Medellín, mega-cidade do interior, muito diferente. A presença do dinheiro vê-se do ar: colinas luxuriantes com plantações, quintas e condomínios, arranha-céus sofisticados a par de favelas. A minha estadia foi de escassos dias, como em Cartagena (declaração de interesses: estive em ambas para o Prémio de Jornalismo Ibero-Americano da Fundação Gabriel García Márquez, de que este ano fui júri), mas entre atravessar diariamente uma metrópole de quatro milhões e percorrer a pé uma das suas maiores favelas (a Comuna 8), deu para ver pelo menos duas coisas: comparada com o Rio de Janeiro ou São Paulo, Medellín parece ter conseguido alguma fluidez no trânsito com uma aposta em transportes públicos; e, dentro de uma Comuna onde ainda há pouco a violência dominava, tanto as infraestruturas como os transportes parecem bem à frente do que o Estado fez nas favelas do Rio. Medellín era a cidade do narco Pablo Escobar, uma parte grande da população vive em favelas, certamente algumas estarão piores do que a que vi, mas a energia geral é de algo em movimento, para melhor.

4. Medellín é também um bastião de Uribe. Mas mesmo lá a expectativa não era que o Não ganhasse. Sábado à noite, no encerramento do Festival Gabo (durante o qual os prémios de jornalismo são anunciados) milhares de pessoas lotaram o concerto da mexicana Natalia Lafourcade, e festejaram ruidosamente quando ela pediu a paz. Em vários dos debates do festival a paz foi um tema. Mas a fractura era clara, toda a gente falava dela também, havia preocupação pelo que pudesse causar. Vários dos colombianos que iam votar Sim diziam compreender parte das razões do Não: como será difícil ver os temidos/odiados inimigos de ontem na política, na cidade. Domingo de manhã, dia do plebiscito, calhou tomar o pequeno-almoço com uma caribenha que ia voar de imediato para chegar a tempo de votar, mas estava apreensiva: não parava de chover lá, inundações imensas, o furacão Mathew. Muita gente não iria votar, previa.

5. Assim foi. Só 37 por cento dos eleitores participaram, o equivalente a 13 milhões de votos. E por apenas 63 mil o Não ganhou. Na contagem final, em percentagem: 50,21. Confirmação de um país dividido, de que os alertas catastrofistas de Uribe surtiram efeito, e de que a mensagem do Sim não foi suficiente para convencer indecisos, com ou sem furacão. Mas onde o Não ganhou não foi nas zonas mais afectadas pelos ataques das FARC. Ao contrário, aí o Sim ganhou claramente. Portanto, quem mais sofreu com a guerra quer que este acordo vá em frente. E perdeu na soma nacional para a Colômbia ultraconservadora e pro-paramilitar de Uribe.

6. Uribe governou a Colômbia de 2002 a 2010. Durante o seu governo os paramilitares, aliados do exército, cometeram massacres e violências múltiplas por entre a luta contra as FARC. Antes de deixar o cargo, Uribe recompensou-os com uma amnistia. Mas, quanto às FARC, só aceita um acordo de paz em que os guerrilheiros sejam presos e não possam participar na vida política. Filho de um pai que morreu numa tentativa de sequestro, Uribe encara o combate à guerrilha como um assunto pessoal. Tal como o seu duelo com Santos é um duelo pessoal: o ex-presidente minando os esforços do seu sucessor, que aliás fora seu ministro da Defesa.

7. A notícia de que o Não ganhara apanhou-me no aeroporto de Medellín. Pessoas começaram a chorar no embarque. Metade de um país em choque. O que aconteceria agora? Os guerrilheiros que tinham começado a sair da selva, a aparecer em capas de jornais pelo mundo, voltariam à selva e às armas? A ministra Gina Parody demitiu-se. Uma activista comentou: “Que tristeza um país em que as pessoas têm mais medo da homossexualidade do que da guerra.” As FARC tinham dito que não cederiam mais do que está no acordo. Mas o líder do comité negocial, Ivan Marquez, declarou depois do resultado: “Vamos ouvir as vozes dos diversos sectores do Não, do Sim, e antes de mais as das vítimas. E também queremos ouvir os 20 milhões que se abstiveram.”

8. Sexta-feira, o Comité Nobel pegou no braço de Santos e voltou a levantá-lo. Trinta e quatro anos depois de García Márquez, a Colômbia ganhava o seu segundo Nobel. Mas se o da literatura fora de reconhecimento a uma obra já feita, o da paz era um empurrão a Santos para que o feito possa acontecer. “O comité espera que o prémio da paz lhe dê força para ser bem sucedido na sua difícil missão”, dizia o comunicado, tal como “tem esperança de que nos próximos anos os colombianos possam amadurecer os frutos do processo de reconciliação”. Legalmente, é possível um segundo plebiscito. Politicamente, será necessário rever algo do acordo para que não se vote o mesmo. Nem Santos nem as FARC parecem agora fechar a porta a isso. Difícil imaginar como quem depôs as armas voltará a empunhá-las. O Nobel não os empurra de volta à selva, ao contrário.

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