Luigi Comencini regressa a casa

Com a cópia restaurada de Tutti a Casa, o Festival de Veneza homenageou um grande cineasta, mas ainda a precisar de nobilitação, na passagem do seu centenário.

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O festival apresentou uma versão restaurada de Tutti a Casa (1960) dr

La La Land, de Damien Chazelle, abriu a competição do Festival de Veneza, mas memorável foi a pré-abertura, terça-feira à noite, quando corpos do passado mexeram visivelmente com uma sala cheia de espectadores. Primeiro foi a voz, depois, inicialmente só ao longe, os trejeitos do corpo. A assistência reconheceu-os, a massa humana mexeu-se no escuro. Finalmente, apareceu Alberto Sordi e começou a escancarar o espelho de uma tipologia humana feroz e patética (somos todos nós, afinal) que fala hoje do ecrã como se fosse presente. Sem estar domada pela passagem do tempo, sem ter sido condenada à inconsequência.

Comemorava-se o centenário do nascimento de um grande cineasta italiano, Luigi Comencini (1916-2007), que talvez seja um daqueles que, apesar dos seus sucessos, e apesar de filmes simplesmente sublimes (olhem aqui três: O Incompreendido, de 1966, A Iniciação Sexual de Casanova, de 1969, Delito de Amor, de 1974), ainda precisam de trabalho de nobilitação. A sessão de terça-feira à noite quis fazer a sua quota parte.

O festival apresentou uma versão restaurada de Tutti a Casa (1960). Um ano depois de La Grande Guerra (1959), uma das obras-primas de Mario Monnicelli e de todo o cinema italiano, em que interpretava um soldado cobarde nas trincheiras de 1916, Sordi passava a Comencini, a 1943, à Itália fascista, ocupada pelos alemães com americanos à porta, e continuava assustadoramente humano: um homem que olha e não se compromete, que acode a cada status quo, ofegante por desaparecer nele, até que um dia decide que é preciso parar de olhar quando é apenas isso o que se está a fazer, e é preciso comprometer-se. No final vemo-lo com arma nas mãos em Nápoles.

Foi uma sessão comovente: Francesa Comencini, uma das filhas do realizador, também uma cineasta, falou da importância que o filme tivera para o pai, ele que em criança fora obrigado a viver fora de Itália, em França, e como com Tutti a Casa, em que as personagens atravessam o país como se o conquistassem, como se o fizessem seu, tinha à sua maneira regressado a casa, procedido à sua “territorialização”.

Paolo Baratta, presidente da Biennale de Veneza, sob cuja égide se organiza o festival, assumiu Tutti a Casa como um compagnon de route, um daqueles filmes com que vamos conversando a vida toda porque nos fornece respostas para o que ir fazendo. Foi um testemunho que tocou no cerne de um filme em que a questão, sob a capa da chamada “comédia à italiana” – categoria que nem sempre era elogiosa, aliás –, são as deflagrações morais a partir do que os nossos olhos vêem. Mas fundamentalmente tocou no cerne deste cinema popular perdido, que era didáctico, que era formador e que não deixava que reduzissem a sua selvajaria – cinema perdido para todos nós que, hoje, invejosos, não temos tantas possibilidades de crescer, de fazer a aprendizagem com o olhar, com as vidas de cada filme.

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