O Brasil na hora incerta do pós-Dilma

Dilma Rousseff já faz parte do passado do Brasil. Mas o processo que a vai destituir no Senado deixa no ar sementes perigosas para o futuro.

O Brasil entra nesta quinta-feira na última etapa de um processo político de consequências imprevisíveis. Só por um milagre Dilma Rousseff conseguirá escapar a uma sentença de destituição (impeachment) no Senado do Brasil, sentença que transformará em pó o mandato que 54 milhões de brasileiros lhe conferiram nas eleições de Outubro de 2014. Num jogo de sombras entre democracia formal e democracia real, o Brasil põe em risco o exemplar caminho democrático e constitucional criado depois da queda da ditadura militar e abre a porta a uma permanente incerteza sobre a natureza do seu sistema presidencial. Ao destituir uma presidente usando como pretexto um “crime” fiscal que, na prática, todos os antecessores usaram, a Câmara de Deputados e o Senado do Brasil arrogam-se o direito de torpedear os resultados das eleições e de instituir uma eleição indirecta que, mesmo estando formalmente conforme aos preceitos constitucionais, não deixa de revelar um jogo político de duvidosa moralidade e de nula inspiração democrática.

Restam poucas dúvidas de que, depois de 12 anos no poder, o PT de Lula tinha esgotado o seu projecto político. O Brasil que o PT ajudou a criar é um Brasil mais justo, mais moderno e mais habitável. Mas a arrogância dos seus dirigentes impediu o país de se reformar, de criar condições para que a equidade dependesse mais da sociedade e da economia e menos da generosidade pública. E, principalmente, estimulou uma cultura de inimputabilidade que deu origem ao Mensalão e ao inominável escândalo do Lava-Jato. Em 2014, teria sido bom para o Brasil se este projecto esgotado pelo desgaste e pela fragilidade da economia mundial fosse travado nas urnas. Mas não foi. Entre as opções em aberto, os brasileiros mantiveram a aposta na dupla Dilma-Temer.

Incapazes de assumir a derrota eleitoral, aliados e opositores de Dilma e do PT reuniram-se entretanto numa ampla coligação para subverter no Parlamento a escolha popular. Precisavam de um pretexto, e como Dilma se mantinha fora das suspeições do Lava-Jato, descobriram uma oportunidade nas “pedaladas fiscais”, ou seja, em medidas orçamentais aplicadas sem decisão do Congresso e escondidas da opinião pública e da fiscalização do Parlamento. Uma decisão politicamente grave, sem dúvida, mas ainda assim sem proporcionalidade para justificar uma destituição. Num sistema político mais maduro e, principalmente, mais coerente e organizado, este cenário seria improvável. Mas, no Brasil, onde a fidelidade aos partidos ou o apoio aos governos é apenas instrumental, tudo é possível.  

Ainda que formalmente legítima, a destituição de Dilma poderá deixar marcas para o futuro. O PT, um partido-símbolo da esquerda contemporânea, vai ter de se reinventar. A fragmentação e personalização dos mandatos políticos, em que as ideias, os valores e os programas são voláteis, encontram neste processo o esplendor da sua força e ameaçam subverter a lógica do presidencialismo brasileiro. E a corrupção que arrasou o PT pode ter a mesma consequência no PMDB, o partido de Temer, que aliás está já no centro do furacão. Aconteça o que acontecer, o Brasil vira por estes dias uma página da sua História recente. Seria bom que os progressos políticos, sociais e económicos da última geração não se extinguissem na voragem da mudança. 

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