Os sismos e a eventual responsabilização dos poderes públicos

As repercussões do processo judicial de Áquila deveriam merecer a melhor atenção por parte das entidades nacionais.

A propósito do sismo que voltou a abalar o centro de Itália ontem de madrugada, será pertinente recordar que, em Outubro de 2012, um tribunal italiano condenou sete cientistas a seis anos de prisão por terem sido considerados responsáveis pela morte e ferimentos de pessoas no sismo que ocorreu na cidade de Áquila a 6 de abril de 2009.

Na ocasião, o Ministério Público italiano pediu penas de quatro anos de prisão, mas o tribunal agravou a pena para seis anos, acrescida de outras medidas (por exemplo, nove milhões de euros de indemnizações).

Todos os acusados eram membros de uma comissão nacional para a previsão e prevenção dos riscos mais importantes, a Comissione sui Grandi Rischi, que fazia parte do sistema de proteção civil italiano. Foram acusados de culpa, na forma de negligência, imprudência e incompetência.

De acordo com a acusação, as declarações prestadas por aquela comissão a órgãos da comunicação social foram incompletas, imprecisas e contraditórias, tendo modificado a perceção dos cidadãos e das autoridades locais sobre o risco sísmico: as vítimas teriam alterado o modo habitual de se auto-protegerem em resultado das declarações provenientes da referida comissão. Considerou-se, assim, que os cientistas membros da Comissão Grandi Rischi incutiram na população uma “falsa sensação de segurança”, a qual desincentivou os comportamentos habituais perante manifestações sísmicas (sair de casa e dormir na rua ou em carros até a terra acalmar), provocando assim, segundo o aresto, um aumento considerável do número de vítimas mortais.

Na altura, a sentença do tribunal italiano provocou uma reação muito forte por parte da comunidade e das organizações científicas internacionais, bem como na opinião pública. Sensivelmente dois anos mais tarde, em 2014, o Tribunal de Recurso de Áquila viria a absolver seis dos sete especialistas inicialmente condenados, tendo também reduzido a pena ao sétimo especialista, para dois anos de prisão com pena suspensa.

Independentemente do juízo que se faça sobre a proporcionalidade da decisão proferida em primeira instância e depois revista pelos tribunais italianos, e da bondade da reação de indignação generalizada na opinião pública que essa decisão suscitou, a análise e a reflexão suscitadas pelo processo de Áquila colocam alguns desafios com interesse para a comunidade científica, mas também questões jurídicas pertinentes de responsabilização para os serviços de proteção civil, e, nessa medida, para o próprio Estado-Administração.

A questão não é obviamente despicienda, pois, não obstante a sismicidade do território italiano ser mais intensa, Portugal tem também zonas de alto risco sísmico, pelo que as repercussões do processo judicial de Áquila deveriam merecer a melhor atenção por parte das entidades nacionais.

Com efeito, não devemos deixar de assinalar que, mesmo no caso dos chamados “riscos naturais”, onde o grau de imprevisibilidade é por inerência maior, impende ainda assim sobre o Estado, na sua função administrativa, um espetro de responsabilização com cobertura no plano jurídico. Essa suscetibilidade de responsabilidade pública tem aqui um sentido alargado, contendo não apenas uma vertente reparatória, em caso de défice da proteção devida, mas também uma vertente preventiva, projetada com particular incidência no dever de informação às populações que assiste às autoridades administrativas em geral.

Evidentemente, coloca-se sempre a questão de qual o quantum de informação nestes casos, de risco sismológico ou outros fenómenos de idêntica natureza, que os poderes públicos devem observar. Em teoria, será pacífico que a informação a prestar deve ser suficiente sem ser alarmista, objetiva sem ser redutora. Mas, em cenários de incerteza, é muitas vezes tarefa inglória encontrar nestes casos um ponto de equilíbrio, de adequação da informação a prestar e das eventuais medidas preventivas (evacuações populacionais em massa, por exemplo) a tomar pela administração com os bens a salvaguardar e com a intensidade do risco a considerar.

Certo é que esse juízo de ponderação, entre a obrigatoriedade que assiste às entidades públicas, mormente serviços de proteção civil, do dever de informação, na sua dimensão ampla de proteção, e o risco natural que se pretende evitar, pode efetivamente convocar a responsabilidade (civil e criminal) dos poderes públicos e de quem os represente, caso se comprove que a informação prestada não tenha sido suficientemente clara e persuasiva, no sentido de alertar inquestionavelmente para a possibilidade de um grave e iminente risco, ou seja, caso se demonstre a existência de um défice comunicacional – salvaguardada a margem de falibilidade que a análise destes tipo de riscos sempre acarreta –, que venha a amplificar os danos decorrentes da efetiva ocorrência desse risco natural.

Ora, a questão, por mais alarmante que possa parecer, afigura-se inevitável: e se um dia (batemos com os dedos duas vezes na madeira) ocorrer entre nós um grande terramoto, equiparável ao de 1755? Estará o Estado português, designadamente as autoridades administrativas com especiais responsabilidades nestas matérias, ciente da sua responsabilidade? Ou estaremos nessa eventualidade, ainda assim, perante um caso de risco desconhecido, insuscetível de poder acionar os mecanismos da responsabilidade civil do Estado, atualmente consagrados na Lei n.º 67/2007, seja por fato ilícito, seja pela via da responsabilidade pelo risco?

Jurista, mestre em Direito

Sugerir correcção
Ler 2 comentários