Deixem o burkini em paz

A proibição do burkini é não só ridícula como contraproducente.

Eu sou a favor da proibição do uso da burka e do niqab no espaço público. Entendo, por várias razões, a principal das quais é a segurança, que não devem ser autorizadas roupas que não permitam ver o rosto de quem as usa. Mas o burkini não é uma burka para usar na praia. O burkini é uma peça de roupa com um nome infeliz. O rosto das mulheres está bem visível. Tem enormes parecenças com um fato de mergulho. Ou com a roupa que as nossas avós usavam na praia há não mais que trinta anos. A sua proibição é não só ridícula como contraproducente.

Contraproducente, desde logo, pela imagem de polícias franceses a mandar despir uma mulher muçulmana numa praia de Nice e a multá-la com o argumento de não estar a usar “roupa que respeite os bons costumes e o secularismo”. A metade lúbrica do meu cérebro agradece muito que andar de biquíni seja a nova definição de “bons costumes” em França. Mas a metade ponderada do meu cérebro não consegue vislumbrar de que forma pode isto ser uma boa ideia. Ninguém suporta ver quatro polícias armados de cassetetes e gás pimenta a obrigarem uma mulher muçulmana a tirar a roupa em frente a uma filha que chora, enquanto entre a multidão de veraneantes há gente a gritar “vai para casa”. A senhora nem sequer estava a usar um burkini, o que significa que os polícias marítimos necessitam de vigiar os areais acompanhados de personal stylists, de forma a apurarem as diferenças entre um burkini genuíno e um combinado de leggings mais camisa.

Há 75 anos, a vida dos polícias portugueses estava mais facilitada, porque os regulamentos tinham outro detalhe. No decreto-lei n.º 31:247 de 1941 exige-se o escrupuloso cumprimento das “condições mínimas a que devem obedecer os fatos de banho”, de forma a “evitar a corrupção dos costumes”. Na época balnear de 1940 as “concepções morais e mesmo estéticas” do povo português haviam sido postas em causa com a chegada da primeira leva de refugiados da Segunda Guerra. Os editais desse tempo passaram então a ordenar que o fato de banho fosse “inteiro” e sem “decote exagerado, a ponto de descobrir os seios”, e, nas costas, “sem prejuízo do corte das cavas que devem ser, quanto possível, cingidas às axilas”. Também não era permitido o uso de fatos de banho que se tornassem “imorais pela sua transparência ou pela excessiva elasticidade do tecido”.

Querer agora o exacto contrário disto é tão ridículo quanto querer isto. É impossível regulamentar roupa para usar na praia sem que o resultado seja patético. Atenção: eu não estou a dizer que o burkini seja apenas um trapo insignificante e simbolicamente neutro. Ele significa, de facto, direitos desiguais e uma cultura de subordinação da mulher ao homem, razão pela qual me entristece que esteja à venda em lojas como a Marks & Spencer, quando há um óbvio conflito civilizacional entre modos de vida. O ocidente deve lutar pelo valor da igualdade de género e não apenas por uma economia de mercado sem regras morais que apenas nos diz: “há aqui uma nova área de negócio, vamos aproveitar”.

Contudo, qualquer bom liberal tem de ter um cuidado extremo com a supressão de direitos individuais, entre os quais obviamente se inclui a roupa que cada um de nós leva à rua. O excesso multiculturalista é um mal e acho importante que o ocidente estabeleça linhas vermelhas na sua relação com as comunidades islâmicas, até para impedir o descontrolo da xenofobia. Mas traçar essa linha na areia da praia é um péssimo sítio por onde começar.

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