“A sociedade turca é mais democrática do que o seu Governo”

Öztürk Yilmaz diz que o futuro da Turquia depende de saber se Erdogan e o seu partido “aprenderam a lição” a retirar do golpe falhado de 15 de Julho. Um golpe derrotado “não por causa dos 50% dos eleitores do AKP, mas por causa do resto dos turcos”.

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Um diplomata mede sempre as palavras, mais ainda em tempos especialmente delicados como estes, ainda mais se esse diplomata já tiver sido refém do Estado Islâmico (raptado em Mossul, no Norte do Iraque, em Junho do ano passado, quando era cônsul da Turquia na cidade) durante 101 dias. O ex-embaixador Öztürk Yilmaz foi libertado em Setembro e em Novembro, quando se especulava se iria juntar-se ao partido no poder, apresentou-se às legislativas nas listas do principal partido da oposição. Hoje é vice-presidente do CHP (Partido Republicano do Povo), a formação do fundador da Turquia moderna, Mustafa Kemal Atatürk, e deputado.

“Fui um dos primeiros a condenar o golpe, dizem-me que fui o primeiro a aparecer na televisão” na noite de 15 de Julho, diz o político de 47 anos, sentado no seu espaçoso gabinete, no 11.º andar da sede nacional do CHP, um edifício moderno no bairro de Sögütözü, um pouco afastado do centro da movimentada capital, perto o suficiente para ir e vir do Parlamento, várias vezes ao dia, se preciso for, como agora é. A sua conselheira política, uma ex-jornalista “muito contente com o novo emprego, há quatro meses”, interrompe para lembrar que se aproxima a hora de mais uma ida à Assembleia (depois apresenta-se e brinca com o facto de se chamar Hatice Erdogan).         

Quais era os principais problemas na situação política da Turquia antes desta tentativa de golpe de Estado?
Nos tempos que antecederam a tentativa de golpe havia uma tensão política entre o partido no poder e o resto da sociedade. O AKP [Partido da Justiça e do Desenvolvimento, no poder desde 2002] não ouvia as nossas opiniões. Pareciam estar cegos às críticas que vinham da oposição e de outros segmentos da sociedade. Havia uma tendência de polarização muito profunda da sociedade. Infelizmente, o Governo portava-se como se tivesse absoluto controlo de tudo; afinal, não tinha.

Há 14 anos que eles estão no poder e este grupo de Fethullah Gülen [imã exilado nos Estados Unidos, ex-aliado do AKP], que parece agora ser o único responsável do golpe, entrou nos gabinetes do Governo pelas mãos do partido no poder. Quando alguns críticos apontaram para as repercussões destas infiltrações generalizadas no sistema, o AKP não ouviu. Os seus dirigentes tinham uma enorme confiança nas actividades de Gülen. E o que é que aconteceu? Foram traídos. Antes do golpe, havia uma tendência para o autoritarismo. O Presidente [Recep Tayyip Erdogan] era muito ambicioso e estava determinado em transformar o sistema parlamentarista num presidencialismo executivo, uma ideia a que muitos turcos se opõem. Temos uma experiência parlamentar de 200 anos: um sistema que tem obviamente algumas falhas, mas que podem ser rectificadas, corrigidas, para se tornar mais funcional, em vez de desistirmos deste sistema em troca de um novo que não sabemos como será.

Até que ponto é que ia essa tendência para o autoritarismo? A Turquia ainda era uma democracia?
A sociedade turca demonstrou, particularmente com o golpe, a sua natureza democrática. As pessoas são leais à democracia, todos os grupos da sociedade vociferaram claramente contra o golpe. O nosso partido foi um dos primeiros a condenar o golpe e eu, pessoalmente, segundo me dizem, fui o primeiro deputado a aparecer no ar a condenar a tentativa, fosse qual fosse o motivo e fosse quem fosse que estivesse por trás do que estava a acontecer.

Temos de compreender que o que aconteceu foi terrível, esta tentativa tinha como objectivo virar o sistema de pernas para o ar. Não há qualquer justificação para fazer isto no século XXI, quando a sociedade turca é mais democrática do que o seu Governo. Saiu-lhes o tiro pela culatra. Não por causa dos 50% de eleitores do AKP, mas principalmente por causa do resto dos turcos, que se ergueram e enfrentaram os golpistas e não lhes deram o mínimo benefício da dúvida [morreram 246 pessoas, a maioria civis]. A Turquia não era uma democracia completamente funcional antes do golpe, mas julgo que isto solidificou a nossa posição, contra o golpe e a defesa da democracia.

O golpe de Estado fracassado pode ser uma oportunidade?
Exactamente. Toda a gente tem de retirar uma lição – o Governo, a oposição, toda a gente. Temos de pôs as nossas divergências políticas de lado e temos de nos unir em torno da ideia de democracia e de um sistema correcto e funcional.

Até agora, o comportamento do Governo do AKP e do Presidente Erdogan apontam nessa direcção?
É demasiado cedo para dizer. Algumas pessoas defendem que, com o passar do tempo, eles se vão esquecer do nosso apoio e vão voltar aos velhos hábitos. Eu não quero acreditar nisso. É impossível governar correctamente numa sociedade tão polarizada como a que tínhamos. Eles têm de perceber que a única abordagem possível é a do consenso, a da tolerância. E esta abordagem não está na base de nenhum outro regime que não seja a democracia.

Há sinais positivos, como a reunião do Presidente com os líderes dos partidos da oposição (menos o HDP, pró-curdo); por outro lado, há as detenções e despedimentos massivos de militares, mas também juízes, professores, jornalistas…
As purgas são uma espécie de limpeza no sistema. Nós não sabemos quem são os conspiradores do golpe que estão no sistema, não temos essa informação. Eles têm de ser banidos. Mas quando se faz isso, os que não tiveram nada a ver com o golpe não devem ser rotulados de traidores, despedidos e postos no mesmo saco. Tem de ser traçada uma linha clara, uma distinção, para não haver abusos contra os direitos dos inocentes. Os que são culpados devem ser punidos e afastados do sistema, os que são inocentes não devem ser atacados pelo meio. Todas as decisões tomadas na sequência do golpe devem respeitar o Estado de direito e a democracia. O processo de limpeza dos conspiradores deve fortalecer o sistema democrático, não pode fragilizá-lo ou pô-lo em causa.

E ainda é cedo para saber se é isso que está a acontecer?
Temos de esperar. A dimensão das purgas é enorme. Nós não sabemos quem são os golpistas, mas o Governo tem de nos dar informações credíveis, a nós, aos turcos, a todos. Nós não temos acesso aos dados dos serviços secretos, como o Governo. Mas exigimos que este processo seja transparente e que os conspiradores e os inocentes não sejam misturados.

O estado de emergência, declarado no dia 20, pode já estar a ser usado para atacar a oposição legítima e os críticos?
Se eles não aprenderam a lição, claro. Se não perceberam os perigos da polarização da sociedade, podem estar a usar o estado de emergência para se fortalecer. Se perceberam o que toda a gente percebeu, serão proporcionais e justos com a oposição.

Há mais sinais bons ou preocupantes?
Há sinais positivos, mas estes têm de ser acompanhados de medidas concretas.

Pela primeira vez, o líder do CHP, Kemal Kiliçdaroglu, aceitou entrar no novo Palácio Presidencial, para se reunir com o primeiro-ministro e com Erdogan. Vai passar a haver decisões por consenso, como as alterações à Constituição?
Sim, se houver consenso quanto aos artigos a mudar é bom sinal. Mas a Constituição só pode ser alterada se essa for a vontade da esmagadora maioria dos turcos, que terão de ser chamados a votar em referendo.

Há notícias, não confirmadas, de que Erdogan desistiu dos processos em tribunal contra dirigentes da oposição por “ofensa ao chefe de Estado”.
Se isso acontecer, é um passo na direcção certa e estamos cá para ver. Os ataques aos opositores, como a tentativa de retirar a imunidade a dirigentes da oposição, foram sempre motivados por razões políticas. Uma vez que foram uma decisão política só podem ser travadas por outra decisão política, não tem nada a ver com os tribunais. Isto seria bom para não aumentar a tensão. Dirigir a Turquia com medidas irresponsáveis só vai aprofundar a crise.

Se a boa vontade continuar poderá estar para breve o reinício de negociações de paz com o PKK [Partido dos Trabalhadores do Curdistão, grupo armado que pôs fim ao cessar-fogo anunciado em 2013 depois do fracasso das negociações com o Governo, o ano passado]?
É muito difícil, a situação é muito tensa. Nós opomo-nos a quaisquer conversações com o PKK, que é uma organização terrorista. Outra coisa são negociações de paz com os curdos, são duas coisas diferentes. Negociar a paz com os curdos, sim, é possível, mas para já não me parece.

O regresso da pena de morte, admitido a semana passada por Erdogan e vários membros do Governo, é uma possibilidade real?
Não sei, estamos no pós-golpe imediato e é natural que se diga muita coisa. Agora, há quem diga: ‘vamos enforcá-los’. O golpe foi há muito pouco tempo, com o passar dos dias temos de ter calma. Temos responsabilidades com a União Europeia [em teoria, a Turquia ainda é um candidato à adesão] e com o Conselho da Europa. Pessoalmente, não penso que fosse útil. A legislação existente permite punir os culpados de forma adequada, depois de serem julgados em processos transparentes. Trazer de volta a pena de morte seria um passo muito extremo.

Com as dezenas de milhares de pessoas já suspensas ou despedidas estão a ser asseguradas as funções do Estado?
É uma pergunta muito difícil. Depois de tantos despedimentos de funcionários públicos e burocratas, não é fácil perceber se o Estado está a funcionar correctamente. Mas estas pessoas, os envolvidos neste acto criminoso, no golpe, têm de ser afastadas, não haja dúvidas. Têm de ser detidos e levados a tribunal. Agora, há uma necessidade urgente de substituir estas pessoas, de preencher muitos lugares. E é muito importante que a partir de agora essas posições sejam preenchidas por pessoas seculares, pessoas com uma formação credível que não sejam escolhidas pela sua ideologia, pessoas com mérito provado e que queiram trabalhar para toda a sociedade, não apenas para servir o Governo.

Naturalmente, a maioria das detenções tem acontecido nas Forças Armadas (mais de 8500 membros suspeitos de envolvimento no golpe). Quais serão as consequências para o Exército, o segundo maior da NATO?
Podemos olhar para esta questão a partir de dois ângulos. Em primeiro lugar, é bom porque estas pessoas estão a ser afastadas. Mas por outro lado, será muito negativo se as pessoas certas não forem colocadas imediatamente nesses cargos.

Pessoas que foram prejudicadas nos últimos anos, alegadamente ultrapassadas nas promoções por gulenistas, com o aval do AKP?
Sim, há muita gente, há pessoas suficientes com experiência e qualificações. Não me parece que haja nenhuma fraqueza no Exército a esse nível. Desde que o Governo não decida tendo em conta a ideologia, mas escolha as pessoas baseando-se nos méritos e na sua lealdade ao Estado, ao povo turco e à sociedade.

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As posições da União Europeia têm sido o que esperava, em Bruxelas percebe-se o que está a acontecer na Turquia?
Para dizer a verdade, estamos mais ocupados com as questões internas neste momento. As dinâmicas políticas que nos rodeiam são muito tensas e estamos a tentar enfrentá-las e geri-las. Mas a sociedade turca é muito pacífica, as pessoas não querem nenhuma violência, na sua natureza a sociedade turca é mais democrática do que o seu Governo, isso é o mais importante.

Falámos de uma Turquia muito polarizada. Mesmo que a quente, as declarações dos dirigentes no pós-golpe não têm contribuído para alimentar estas divisões?
É uma questão de tempo, é preciso esperar. O Governo tem de prestar atenção às críticas, tem de aprender a lição do golpe. Porque a realidade é que estamos todos juntos no mesmo barco, ou nos afundamos juntos ou navegamos. Temos de dar mais algum tempo para julgar o comportamento do partido no poder e do Presidente.

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