Cabe todo um Brasil nas canções dos Graveola

No primeiro fim-de-semana do Festival Músicas do Mundo, os brasileiros Graveola e o Lixo Polifônico mostram o novo Camaleão Borboleta, álbum de diálogo com toda a MPB e em que espreitam uma filiação mais ampla na América Latina.

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Em Camaleão Borboleta destapam o activismo político que nunca se despega da sua criação musical Vania Cardoso

No edifício onde Darcy Ribeiro fundou em 1953 o antigo Museu do Índio, deu-se em 2006 uma ocupação da população indígena brasileira, reclamando o direito à propriedade e o direito à memória num prédio que entretanto foi dado para demolição no âmbito das obras levadas a cabo para o acolhimento do Mundial de Futebol no ano seguinte. Como forma de resistência, nasceu a Aldeia Maracanã, nome de baptismo da ocupação, cujo braço-de-ferro com as forças militares e a vontade da Prefeitura acabou por obrigar ao cancelamento da demolição – após a solidarização de parte da população com o protesto.

A situação motiva um dos três temas de Camaleão Borboleta em que os Graveola e o Lixo Polifônico destapam de forma mais clara o activismo político que nunca se despega da sua criação musical. Índio maracanã toma o exemplo dos índios para falar de “uma situação comum na história urbana brasileira”, explica José Luís Braga, um dos três vocalistas do grupo de Belo Horizonte. “As pessoas menos favorecidas sempre são as mais violentadas neste processo e sempre sofreram muito para conseguir um direito básico que é o direito de propriedade.”

Tanto quanto há uma defesa da posição dos indígenas nos Graveola, há também comentário revoltado desta imposição de modelo social a toda a restante população. Quando se fala de integração, está naturalmente subentendida a noção de que uns terão de se converter à ideia de outros daquilo que significa viver em comunidade. “A concepção de uma sociedade que está no topo da escalada evolutiva é totalmente mentirosa”, comenta Luiz Gabriel Lopes. “Esse modelo de civilização branco, capitalista, machista e tudo o mais é um equívoco, como se fosse o pináculo da erudição. Podemos falar dos índios, mas também dos egípcios, dos indianos ou dos chineses.” Em vez da actual discussão de uma possível votação por parte da “turma da Bíblia” para avançar com a evangelização dos índios, os Graveola gostariam de ver a mesa virada ao contrário, privilegiando a escuta do que essas culturas têm para dizer sobre o mundo em que vivemos.

As outras duas temáticas políticas que afloram em Camaleão Borboleta colocam sob a lupa a “legalização da maconha – um problema muito sério no Brasil porque é todo um racismo institucionalizado, uma vez que a política de drogas está conectada às esferas mais altas do poder dentro do Congresso e que está matando diariamente milhares de jovens negros das favelas” –, e a manipulação mediática. Uma outra evangelização, televisionada, em que os Graveola apontam o dedo à Rede Globo na responsabilidade de moldar a opinião popular de acordo com os seus próprios interesses. Daí que em Sem Sentido se fale da internet como libertação desse jugo.

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Criados numa “rotina clássica de família de classe média ou média-baixa brasileira” em que se jantava de frente para o Jornal Nacional da Globo, seguido da novela das oito e de ordem para recolher para a cama, os Graveola recordam a forma como ficaram marcados pelo debate na segunda volta das presidenciais de 1989, entre Lula da Silva e Collor de Melo. A estação foi na altura acusada de favorecer intencionalmente Collor, que acabaria por vencer a disputa, e os responsáveis pelo Jornal Nacional acabaria por a reconhecer que a montagem apresentada dos “melhores momentos do debate”, como se fosse um jogo de futebol, tivera como objectivo deixar claro para o público que, na sua opinião, Collor se superiorizara a Lula.

A acusação extensiva desde o período da ditadura militar brasileira até ao posicionamento claro no processo de destituição da ex-Presidente Dilma Roussef (a que os Graveola se referem, como muitos outros, como “golpe de estado”) toma a Rede Globo por alvo, mas o apelo que se ouve permanentemente em Sem Sentido insta à procura de fontes alternativas, a não confiar cegamente em nenhum discurso que chegue com o carimbo de “oficial”, advogando o “mosaico diferenciado de informações” que a internet veio proporcionar. Tudo isto está muito próximo daquela que é também a mais intensa característica musical dos Graveola: o mais absoluto sincretismo estilístico, a filiação empenhada e convicta em reflectir nas canções a diversidade, a complexidade e as contradições do povo brasileiro (não muito diferentes das de qualquer outro).

“Isso é tanto acidental quanto intencional”, comenta Luiz Gabriel. “É propositado na medida em que a gente assume isso com a intenção de trazer para o primeiro plano. Tem muito que ver com a famigerada noção brasileira de antropofagia, de choque, de contradição.”

Memórias afectivas

Desde que se formaram há doze anos, em Belo Horizonte, os Graveola há na medida em que se servem de todos os arquétipos disponíveis sem qualquer pudor, como se em cada álbum tentassem concentrar toda a música popular brasileira, atravessada quer por rock psicadélico quer por ritmos tradicionais. Em Camaleão Borboleta, apresentado esta sexta no FMM em Porto Covo, há um legado mais claramente assumido e que surge no encontro com o produtor Chico Neves e com o cantor dos Skank Samuel Rosa.

“As pessoas que ouvem Skank não conhecem necessariamente Graveola”, diz Luiz Gabriel, alegando que a música independente continua fechada num gueto. “Quem ouve Skank está ligado num outro modus operandi de consumo de música, está ligado na rádio, na televisão, em meios que infelizmente se tornaram muito anacrónicos. No Brasil, os filtros estão muito velho, não absorvem mais a produção de artistas que estão produzindo muita música boa.”

O contacto com Chico Neves teve um primeiro momento quando lançaram o álbum de estreia, em 2009, e o produtor deixou uma mensagem elogiosa no My Space da banda. Na altura, tinha a importância de um nome famoso a dar a sua bênção, mas foram precisos alguns anos e ligações familiares para a aproximação resultar na colaboração de Camaleão Borboleta. A oportunidade não podia ser ignorando, sendo Chico Neves o produtor de discos emblemáticos para a memória colectiva do grupo. Discos de viragem na discografia de gente como Lenine (O Dia em que Faremos Contato), Skank (Maquinarama), Los Hermanos (Bloco do Eu Sozinho) ou O Rappa (Lado B Lado A).

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José Luís acredita que isso acontece porque Neves é um promotor de “encontro afectivos, não apenas profissionais”. Os Graveola gravaram no estúdio em que é também a casa do produtor, entrando, de repente, pelas suas relações familiares, sem horas para terminar, em que o estúdio parecia um prolongamento da sala de jantar. Tanto Neves quanto Samuel Rosa aparecem no álbum enquanto referências da música brasileira com que os Graveola encetam diálogos para “firmar uma espécie de espaço ético, estético e político”. Back in Bahia, por outro lado, tema escrito e cantado por Luiza Brina, soa a uma resposta com um atraso de 45 anos a “Maria Bethânia”, quando o exilado Caetano Veloso escrevia à irmã rogando por notícias encorajadoras do estado do Brasil.

“Não é que seja pensado”, responde Luiza, “mas é uma influência natural. O título da música é plágio de um título do Gilberto Gil, e a influência da Tropicália de Gil e Caetano vai sempre aparecendo, faz parte das memórias afectivas do Brasil.” “São referências quase carnais”, acrescenta José Luís, “estão tão entranhadas que nesse disco vão aparecendo, tal como os ritmos do Nordeste.” Assim como a Argentina tem o seu vuelvo al sur, defende Luiz Gabriel, Camaleão Borboleta tem clarificada a existência da correspondente terra mítica brasileira no Nordeste. “Acho que a gente tem raízes nisso que transcendem a hereditariedade”, justifica. “No Nordeste há estados onde o caldo de cultura popular é muito transbordante, não foi tão sufocado pela urbanidade. E o disco tem um elogio a essa matriz da música.”

Por influência de Luiza – cujo avô espanhol lhe falou de uma “prima anarquista feminista de uns 90 anos” que foi conhecer numa das passagens dos Graveola pela Europa e que inspirou Costi –, há também um reforço da identidade latino-americana que acreditam ser fundamental na transformação de Camaleão Borboleta. Esse imaginário da América hispânica que Luiz Gabriel acredita ser demasiado “distante” para a maioria dos brasileiros – “o Brasil é muito self pride”, descreve – vinga também por aqui, alimentando ainda mais a natureza voraz do grupo. Mas manifestando igualmente a vontade de ultrapassar as dificuldades económicas e cambiais que dificultam planos de digressão pela América Latina. Sendo possível, os Gravela gostavam de fazer uma “coisa meio Robin Hood”, encher os bolsos com um concerto milionário no Japão e esvaziá-los em seguida ao financiar concertos na Bolívia. Para poderem mostrar a sua música e abocanharem mais uns quantos ritmos pelo caminho.

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