Nova política de alianças pode significar fim do “partido charneira”

Será que o PS continua a ser o “partido charneira” do sistema político português? O surgir de uma nova geração de socialistas pode ter alterado a estratégia de poder sem maioria absoluta

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Os apoios do Bloco de Esquerda e do PCP ao Governo quebraram o chamado “arco da governação” Nuno Ferreira Santos

A grande novidade da liderança de António Costa é a alteração da política de alianças que pode ter posto em causa o lugar do PS como "partido de charneira". É isso mesmo que afirma ao PÚBLICO Mariana Vieira da Silva, secretária de Estado adjunta do primeiro-ministro: "A grande diferença é o arco da governação que se quebrou." O sociólogo Pedro Adão e Silva sublinha que "o PS, neste congresso, vai consolidar o facto de ter deixado de ser o partido de charneira e ter passado a ser o líder do espaço da esquerda".

O sociólogo considera mesmo que se tornou "uma impossibilidade o PS poder governar articulado com o espaço da direita", já que os acordos bilaterais com o PCP, o BE e o PEV "não resultam de uma mera mudança de política de alianças, nem é uma consequência da personalidade do secretário-geral do momento", mas é antes de mais "uma consequência de mudanças estruturais" na última década da política europeia.

Adão e Silva explica que "o arco da governação existia porque havia eleitorado do centro", o qual está "em erosão por toda a Europa, afastou-se e a única forma de reconstruir um espaço de compromisso é através da cooptação dos extremos". É por isso também que "o PCP e BE moderaram as propostas, como se o vazio de centro os responsabilizasse".

A disposição para alterar a política de alianças tornou-se clara para o eleitorado, segundo Mariana Vieira da Silva, pela diferença que António Costa introduziu em relação a António José Seguro, que "apostava num PS ao centro", solução que já não era possível fruto da erosão do centro e da "radicalização do PSD à direita". Mesmo assim o secretário de Estado da Defesa e presidente da Federação de Lisboa, Marcos Perestrello, adverte para que é precisamente "pelo facto de o PS estar a governar com base em acordos com partidos à sua esquerda" que "deve aumentar a presença de um discurso próprio com referência aos valores do PS".

A razão de ser desta mudança, em parte, é identificada por Adão e Silva com a existência da crise da dívida. "O compromisso do Bloco Central era Estado Social e Europa Connosco, a partir do momento em que há degradação de condições materiais e a Europa deixa de estar connosco é natural que esse espaço deixe de existir", afirma. E questiona-se mesmo sobre por que razão "o PS continua a aparentemente o optimismo em relação à União Europeia". Isto quando, "pela primeira vez, os interesses do norte e da periferia são contraditórios". E há no PS uma "renovação geracional que corresponde a um euro pessimismo e a um euro cepticismo camuflado".

O Iraque e a dívida

A verdadeira origem da mudança é, para Adão e Silva, anterior à crise da dívida. "A guerra no Iraque foi o momento de consolidação da viragem que formou esta geração e que está na base da reordenação partidária", garante. A "ruptura" nasce aí, "faltava que as lideranças interpretassem esta mudança", conclui o sociólogo, que reconhece que "a personalidade e o currículo político de Costa ajudaram a esse reconhecimento".

Data dessa época, aliás, uma tentativa de coligação à esquerda. De acordo com informações recolhidas pelo PÚBLICO, antes das eleições de 2005, houve um jantar que juntou Sócrates e Costa a Francisco Louçã e Luís Fazenda, inquirindo a disponibilidade do BE para integrar um Governo minoritário do PS. Apesar da aproximação que se dera entre ambos os partidos na contestação à guerra do Iraque, o BE recusou em nome da aposta no crescimento eleitoral. Mas nesse jantar ficaram combinadas estratégias, nomeadamente em relação à repetição do referendo à despenalização do aborto.

Por sua vez, o historiador Rui Ramos lembra que houve uma tentativa de alterar a política de alianças quando da moção de censura que levou à queda do Governo minoritário do PSD de Cavaco Silva. "Em 1987, Vítor Constâncio podia ter feito uma geringonça, mas [o Presidente] Mário Soares não aceitou por causa do PRD". E em 1989, "houve uma geringonça na Câmara de Lisboa".

Ramos não é, porém, tão definitivo quanto Adão e Silva a afirmar que o PS já não é um partido "charneira" e que é impossível o regresso de alianças à direita. Sustentando que um dos elementos de "continuidade nas várias lideranças" é o facto de o PS ser "marcado pela percepção, que surge em 1974-75, de que é o partido charneira", ou seja, que "a linha de divisão da política portuguesa não é entre esquerda e direita, mas entre o PS e a esquerda do PS". É esse papel de charneira que, "no Governo minoritário em 1976, leva Soares a dialogar à direita e à esquerda", refere o historiador.

Essa opção de Mário Soares foi motivada pelo facto de o líder fundador considerar que "o PS era o factor de equilíbrio", uma vez que "era o único partido com implantação verdadeiramente nacional", explica Ramos, frisando que era "no seu interior que se dava o debate entre quem achava que o PS tinha de estar mais à direita ou mais à esquerda", através de figuras como "Lopes Cardoso, mas também Jaime Gama, António Barreto e Medeiros Ferreira".

Para o historiador, a "mudança importante" hoje "é que PS só podia ser charneira em maioria e agora é em minoria". Uma aposta que surge porque a direcção socialista "convenceu-se de que PS vai ter dificuldade em repetir a maioria absoluta de 2005". O risco da perda eleitoral está associada, segundo Ramos, ao facto de "o PS não estar imune à crise da social-democracia europeia", havendo "a percepção muito clara de que o PS não podia passar por oposição colaborante com o PSD", sob risco de se pasokizar.

"Nos anos noventa do século XX e até 2005, havia no PS a ideia de que podia ocupar toda o espaço da esquerda, com o modelo sueco de economia de mercado num mundo globalizado, que viabilizasse um Estado Social que evitasse rupturas sociais", define Ramos, para concluir: "Agora, aperceberam-se que não vão ser o grande partido da esquerda. Isto corresponde a viver um dia de cada vez."

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