Ataque nos EUA faz três mortos e lança questões sobre armas, terrorismo e racismo

Norte-americano que entrou numa clínica e matou três pessoas, no Colorado, gritou "chega de pedaços de bebés". Há quem exija que os jornalistas lhe chamem terrorista.

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O atirador é Robert Lewis Dear, um homem de 57 anos residente no Colorado Polícia de Colorado Springs
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Dear foi capturado com vida ao fim de cinco horas Isaiah J. Downing/Reuters
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O agente morto tinha 44 anos Universidade do Colorado
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A polícia foi retirando várias pessoas que estavam na clínica Justin Edmonds/AFP
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Anda não são conhecidos os motivos do atirador Justin Edmonds/AFP

Os tiroteios e massacres em escolas são acontecimentos frequentes nos EUA, mas o que aconteceu na manhã de sexta-feira no estado do Colorado pôs o país a discutir questões para além da facilidade com que os americanos podem comprar armas. Por volta das 11h30, um homem de 57 anos, armado com uma espingarda semelhante às que são usadas por militares, entrou numa clínica que realiza abortos e começou a disparar, matando dois civis e um dos polícias que tentaram travá-lo.

Um dos primeiros a alertar a polícia sobre o que estava a acontecer na clínica da organização Planned Parenthood em Colorado Springs foi Ozy Licano, um músico de 61 anos que tinha o carro parado no parque de estacionamento. Licano viu o atirador a dirigir-se para a entrada da clínica e a disparar contra um homem que estava a rastejar, tentando encontrar um refúgio.

Num depoimento captado em vídeo pelo jornal The Gazette, de Colorado Springs, a testemunha (e também vítima do tiroteio) diz que assistiu ao início do ataque e que escapou à morte por pouco: "Vi um homem a rastejar em direcção à porta e vi os vidros a estilhaçarem-se. Logo a seguir vi um homem a disparar, e entrei em pânico. Saí do carro e pensei em fugir, mas mudei de ideias e voltei a entrar no carro, para sair dali. Nesse momento ele viu-me. Olhámo-nos olhos nos olhos e ele fez pontaria e começou a disparar. As balas fizeram dois buracos no pára-brisas e passaram por mim. Ele não parava de disparar."

Ozy Licano escapou com ferimentos ligeiros provocados pelos estilhaços dos vidros do carro, mas diz que nunca esquecerá a "face fria e sem expressão" do atirador, que a polícia identificou como Robert Lewis Dear, um homem de 57 anos residente no Colorado e nascido no estado da Carolina do Sul. Dear tem um longo passado de problemas com as autoridades e foi detido várias vezes, mas nunca cumpriu uma pena de prisão – para além de ter sido multado por conduzir sem cinto de segurança e por andar num carro não registado, foi ilibado de duas acusações de crueldade contra animais e viu serem-lhe retiradas acusações de voyeurismo e de escuta de conversas privadas.

Cinco horas de terror
No sábado, a polícia e as autoridades judiciais ainda não tinham estabelecido o que levou Robert Lewis Dear a entrar aos tiros na clínica da organização Planned Parenthood, mas este domingo a agência Associated Press avançou que o atacante gritou "Chega de pedaços de bebés" quando foi detido, indicando que se se tratou de um ataque motivado por questões ideológicas e políticas.

Sabe-se que esteve no edifício durante cinco horas, e que alternou momentos de silêncio com períodos de extrema violência, tentando atingir, através das paredes, as pessoas que se iam refugiando nas várias salas – devido às constantes manifestações anti-aborto e ameaças que têm recebido ao longo dos anos, os responsáveis da clínica mandaram construir uma "sala de pânico", mas muitos dos utentes e funcionários só tiveram tempo de se esconder nos locais mais próximos de si.

Os relatos dos jornais Denver Post e The Gazette indicam que a polícia só entrou no edifício horas depois do início do ataque, devido ao receio de que o atacante tivesse deixado explosivos à sua passagem (foram encontrados vários objectos suspeitos, tanto à entrada como no interior da clínica). Quando entraram, os agentes foram recebendo instruções para chegarem ao compartimento onde se encontrava o atirador, guiados a partir do exterior através das imagens transmitidas pelas câmaras de segurança.

Sem nunca terem conseguido estabelecer contacto por telefone com o atacante, os agentes que estavam na clínica acabaram por conseguir convencê-lo a render-se ao fim de cinco horas, gritando de um andar para o outro. De acordo com os jornais locais, por essa altura a polícia já tinha pedido a presença de um atirador especial para matar o atacante.

Para além das três vítimas mortais – uma delas um polícia que estava de serviço na Universidade do Colorado mas que se juntou aos colegas que cercaram o edifício –, ficaram feridas outras nove pessoas, cinco das quais também polícias. Foram todos hospitalizados, mas nenhum corre riscos de vida.

"Ambiente alimenta terrorismo interno"
No sábado, a direcção da organização sem fins lucrativos Planned Parenthood disse partilhar "das preocupações de muitos americanos de que extremistas estão a criar um ambiente venenoso que alimenta o terrorismo interno neste país". No mesmo comunicado, a organização que se dedica a prestar cuidados de saúde reprodutiva às mulheres (da contracepção a testes de detecção de doenças sexualmente transmissíveis ou vários tipos de cancro, e dos quais os abortos representam apenas uma pequena parte) garante que "não irá recuar na prestação de cuidados num ambiente seguro de que milhões de pessoas dependem e em que confiam".

A Planned Parenthood é um dos principais alvos dos grupos anti-aborto norte-americanos, tanto religiosos como da ala mais radical do Partido Republicano. Carly Fiorina, a única mulher que está na corrida para ser representante dos Republicanos nas eleições para a Casa Branca em 2016, disse num debate televisivo, em Setembro, que viu um vídeo alegadamente filmado numa clínica da Planned Parenthood que mostrava "fetos completamente formados, com o coração a bater, com as pernas a mexer, enquanto alguém diz que têm de o manter vivo para lhe recolher o cérebro". No vídeo em causa, as imagens a que Fiorina se refere não estão directamente ligadas à descrição que vai sendo feita por uma antiga funcionária da organização – é um testemunho sobre uma actividade não comprovada inserido em cima de imagens que não foram captadas numa clínica da Planned Parenthood.

O objectivo dos activistas anti-aborto é cortar o financiamento público à organização, que recebe fundos para manter exames e consultas, mas que não podem ser usados para realizar abortos – os críticos argumentam que as verbas federais permitem que a Planned Parenthood fique com mais saúde financeira para continuar a praticar abortos, e por isso exigem que esse apoio seja cortado.

O Presidente dos EUA, Barack Obama, reagiu ao ataque pondo a tónica numa das suas principais bandeiras – o apoio à limitação do porte de armas. "Isto não é normal. Não podemos deixar que se torne normal. Se estivermos realmente preocupados com isto – se quisermos rezar e apresentar as nossas condolências mais uma vez com a consciência verdadeiramente limpa –, então temos de fazer alguma coisa sobre o fácil acesso a armas de guerra nas nossas ruas por pessoas que não podem tê-lo. Ponto final. Já chega."

Nas redes sociais, como o Twitter e o Facebook, várias pessoas compararam o ataque no Colorado a dois acontecimentos recentes – os atentados terroristas em Paris, no dia 13 de Novembro, e a divulgação de um vídeo em que se vê um adolescente negro a ser morto por um polícia branco com 16 tiros.

"O homem que matou três pessoas na clínica da Planned Parenthood é referido como um 'atirador' pela CNN. Se fosse muçulmano, a CNN usaria a palavra terrorista", criticou no Twitter Craig Considine, professor no Departamento de Sociologia da Universidade Rice em Houston, no Texas.

"O atirador da Planned Parenthood foi detido pacificamente depois de ter atingido cinco polícias. Nós já fomos mortos por muito menos", escreveu o activista DeRay McKesson, considerado pela revista Fortune uma das pessoas mais influentes do mundo em 2015.

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