Gulbenkian goes show

Mas o que é isto?! Rufus Wainwright num ciclo de “Grandes Intérpretes” com a sua mais que xaroposa “ópera” Prima Donna? A Orquestra e Coro Gulbenkian “acompanhando” Rodrigo Leão nos Coliseus? O Senhor dos Anéis com a música ao vivo?

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É quase rebarbativo sublinhar a imensa importância que tem tido ao longo de décadas a programação de música da Gulbenkian, no meio de tantas limitações das instituições culturais portugueses, e da comparativa escassez de possibilidades de fruição e descoberta. “Quase”, mas não despiciendo…

Muitos de nós – eu certamente – somos imensamente devedores dessa programação já que sem ela o que nos faltaria não era apenas a regularidade dos concertos, mas a potencialidade de, com isso, ter uma “experiência” da música e da arte, e em consequência também de “ter mundo” no sentido lato de desfrutar de horizontes, tradições e inovações.

Atingidos na anterior direcção de Luís Pereira Leal níveis de excelência no tocante à presença regular de intérpretes de grande craveira, inscrevendo a Gulbenkian no circuito internacional das mais importantes instituições de concerto, a escolha por concurso público internacional de um reputado programador, o finlandês Risto Nieminen, sublinhou inequivocamente um ainda mais reforçado cosmopolitismo e um horizonte de renovação.

Houve nesta direcção, não pode deixar de ser dito, um erro nada menor como cada vez mais se comprova, a escolha de Paul McCreesh como maestro titular, não só porque chegou de modo indecoroso (no fundo dizendo que estava à procura de “emprego” dadas as restrições nos apoios financeiros ao seu agrupamento, os Gabrieli Consort & Players) como, sendo ele um reconhecido representante da “informação historicamente informada”, a grande maioria das suas abordagens do reportório em que poderia haver maiores expectativas, de Haydn ao primeiro romantismo, tem sido decepcionante.

Mas sobretudo importa sublinhar três aspectos das linhas programáticas delineadas por Nieminen, o início das transmissões directas das óperas do Met com um muito assinalável sucesso público, a abertura às “músicas do mundo”, ainda que a programação represente muito o star system dessa já assaz equívoca categoria que é a world music, e, porventura o mais emblemático sinal de renovação, ou melhor dito, no passado, o que foi esse sinal, o ciclo de Teatro/Música conjuntamente com o Teatro Maria Matos (agora passou a colaboração pontual). Em paralelo, mais a Gulbenkian se tem vindo a inserir num sistema de coproduções internacionais com importantes instituições, como sobretudo o Festival de Aix-en-Provence.

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Prima Donna, de Rufus Wainwright, vai ser apresentado num ciclo de “Grandes Intérpretes” DR

Tudo isto tendo vindo a haver – para nosso contentamento e renovado prazer, diga-se – é com a maior das perplexidades que nos deparamos com esta nova temporada. Mas o que é isto?! Uma vedeta pop como Rufus Wainwright num ciclo de “Grandes Intérpretes” com a sua mais que xaroposa “ópera” (ou “concerto visual sinfónico”), Prima Donna? A Orquestra e Coro Gulbenkian “acompanhando” Rodrigo Leão nos Coliseus de Lisboa e Porto? Um filme como O Senhor dos Anéis com a música ao vivo? Etc., etc.”

O equívoco começa no intuito programático com que Risto Nieminen apresenta a temporada, “A música é para todos”. O propósito será muito louvável (pois, é sempre a tão badalada democratização da cultura...) mas é falacioso e pode mesmo propiciar abastardamentos e demagogia.

E o propósito é falacioso porque de facto não existe “A música”, mas sim diferentes músicas, modos de fruição e de inscrição e práticas sociais. E assim sendo, das duas uma: ou o que é apresentado como “A música” é aquela a que a Gulbenkian se dedica, isto é a música erudita da tradição europeia, e nesse caso a “democratização” no apelo “para todos” é afinal um traço cultural de uma distinção socialmente consagrada e dominante; ou então há um apelo ao público, essa outra abstracção, no sentido do facilitismo e do show off – e essa é lamentavelmente a deriva de que se acumulam inquietantes sinais nesta temporada.

Nem sequer retomo, de tão flagrantes que são, os exemplos de Rufus Wainwright, Rodrigo Leão e O Senhor dos Anéis, porque há outros aspectos que importa realçar.

Já referi a importância do ciclo Teatro Música com o Maria Matos; creio ser insuspeito, antes pelo contrário, de reservas às práticas de interdisciplinaridade e multimédia. Mas tanto mais me permito considerar que há uma perturbante recorrência de “propostas audiovisuais” nesta temporada e que, com isso, ou há coisas sem nexo algum ou então, como na execução live pela Orquestra Gulbenkian da partitura de James Horner para O Senhor dos Anéis (E a seguir o quê ou quem? O expoente das arqui-estereotipadas músicas hollywoodescas, o super-oscarizado John Williams?) parece que a música é um pretexto, a banda sonora de um espectáculo de imagens.

Dou um exemplo: a Viagem de Inverno de Schubert, cantada por Mathias Goerne, mas como “uma viagem visual imaginária”, com encenação e imagens de William Kentridge. O canto de Goerne é superlativo, alucinante, e assinalei-o tanto quanto o consegui exprimir na crítica ao disco. Kentridge é um artista sublime na sua criação de imagens projectadas, quase sempre desenhos ou sombras, e também um encenador musical admirável. Mas mesmo se a interpretação musical, por um lado, a criação visual por outro, são superlativas, qual é o nexo do intento? E mais: como se pode deturpar (porque, receio, disso se trata) que a “essência da alma” como se manifesta no lied, um dos vectores fundamentais do romantismo alemão, reside precisamente na intimismo, senão mesmo nudez, com que os sentimentos são expressos pelo canto e piano, e tão só no despojamento de canto e piano?

(Diga-se que esta luxúria de produção é tanto mais chocante quanto do mesmo modo a Gulbenkian, a única entidade com capacidade de ter uma programação de lied, cortou com essa, com o pretexto de “não atrair grande público”. Mas então a Gulbenkian o que quer agora é “atrair grande público?!)

Uma extraordinária encenadora, Katie Mitchell, justifica todas as expectativas para Trauernacht, sobre cantatas de Bach. Mas não é demais – ou um viciado efeito de moda – ter também um outro espectáculo visual, Be With Me Now, uma mescla de trechos supostamente constituindo “um percurso amoroso pela ópera europeia”? E o que é uma “ópera fantasmagórica” comoL’Autre Hiver? E a que propósito um agrupamento barroco, os Músicos do Tejo, convidam um cineasta como Pedro Costa, e o que é a Vitalina que conhecemos do último e portentoso filme de Costa, Cavalo Dinheiro, tem a ver (ou a ouvir) com Vivaldi, Händel ou Bach? Pois, é muito artytrendy, mesmo chique, quão não chiquérrimo, como nos vestidos e poses daquela coisa de Wainwright.

Se atentarmos ainda a que se acumulam inquietantemente os programas de pot pourri, de best of…, de miscelânea, então há mesmo bastos motivos de perplexidade, que nem dizem só respeito à Gulbenkian – desde logo vários destes espectáculos são coproduções internacionais. Mas que propostas de programação são estas? São para “atrair grande público”? “Para todos”? Mas é o show, o show, o show?

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