Vamos colocar este Sequeira no lugar certo

A Baixela da Vitória: uma obra-prima da ourivesaria portuguesa desenhada por Sequeira

A chegada ao porto britânico de Portsmouth, no outono de 1816, da magnífica baixela em prata dourada foi assinalada pelos jornais ingleses, que informaram que a fragata Pérola teria trazido de Portugal os 55 caixotes carregados com o precioso tesouro. O destinatário final era o general Wellington, à data celebrado como herói da batalha de Waterloo, na qual a Grã-Bretanha derrotou de forma definitiva as intenções imperialistas de Napoleão Bonaparte. Entre as muitas ofertas feitas ao general, este tributo do povo português pelo extraordinário esforço em tempos tão difíceis, não deixou de produzir impacto na sociedade britânica e de ser reconhecido pelo militar.

A receção e escolta da baixela, de Portsmouth até Londres, foi encomendada à firma Garrard, ourives da casa real britânica. O transporte foi feito com desvelo, acompanhando-a três ourives portugueses desde Lisboa, encarregados de reparar algum dano que sofresse, o que não sucedeu. A exposição pública da baixela causou curiosidade na sociedade aristocrática e burguesa londrina, que se deslocou em peso à loja dos famosos ourives, pagando bilhetes para poder apreciar o conjunto magnífico.

Contudo, o fabrico da maior encomenda de ourivesaria executada por ourives portugueses não deixou de ter alguns percalços. O desenho para as peças que constituem a baixela foi, naturalmente, pedido ao grande artista do momento, o pintor régio Domingos António Sequeira. Tendo permanecido no Reino durante a retirada da Família Real para o Brasil, o seu apoio à causa francesa durante o tempo da ocupação valeu-lhe ser denunciado e preso na cadeia do Limoeiro, depois do exército francês ser expulso. O seu génio como desenhador valeu-lhe a recuperação das boas graças do Conselho de Regência, e foi exactamente a encomenda do desenho da baixela que deu azo ao reatamento das boas relações. Não restam dúvidas de que ele seria o artista ideal e o desenhador competente para conceber um projeto erudito que imaginativamente conciliava as alegorias na linguagem moderna do neoclássico. Após a recusa do primeiro risco, ao qual o Conselho não reconheceu as referências de exaltação patriótica que se pretendiam, Sequeira lançou-se a desenhar uma vasta panóplia de desenhos para peças decorativas e utilitárias. Cinquenta e três (39 referentes ao centro de mesa, e 14 das restantes peças) destes riscos integram hoje a coleção de desenho do Museu Nacional de Arte Antiga.

O artista preocupou-se com o traço do grande plateau ou centro de mesa, com oito metros de comprimento e um metro de largura, onde se concentrava grande parte da mensagem que a obra pretendia exaltar. Esteticamente, é no classicismo de raiz arqueológica que o artista vai beber inspiração para delinear alguns detalhes descritivos das ações heroicas do homenageado, juntando-lhes troféus e armas como elementos decorativos.

A ornamentação do monumental plateau acumula elementos simbólicos, numa contínua alegoria, de que sobressai a representação da Fortaleza e das Tágides. Ninfas dançantes, candelabros em forma de palmeira de 12 ramos – numa alusão às 12 sangrentas batalhas da Península - e trombetas tocando, conjugam-se no centro em três fachos gloriosos, orgulhosamente cada um ostentando o símbolo heráldico da Tripla Aliança, as três nações, Portugal, Inglaterra e Espanha, aliadas perante a ameaça gaulesa.

As restantes peças que completam a baixela, de cariz mais utilitário, foram desenhadas num requintado e linear estilo neoclássico. No entanto, a figuração escultórica de teor mitológico enriquece subtilmente a estrutura das peças, bem como o espaço decorativo. Por exemplo, nas terrinas, a presença do escudo de Minerva, utilizado pelo herói Perseu para salvar Andrómeda do monstro marinho, cria uma espécie de paralelo simbólico entre o herói e o monstro, ou seja, entre o general Wellington e Napoleão Bonaparte.

O processo de execução desta empresa não foi totalmente pacífico. Pretendendo-se criar um monumento nacional simbólico de um episódio heróico que o artista deveria converter em verdadeira obra de arte, o Conselho de Regência exigiu, desde logo, que a baixela fosse inteiramente executada por portugueses. Para tal, Sequeira recrutou um grande número de artífices especializados no Arsenal Militar, tendo esta opção nacionalista causado alguns contratempos no processo de fabrico da baixela, já que estes operários eram constantemente solicitados para o esforço da guerra que ainda decorria. Alguns destes homens são reconhecidos nos seus ofícios, como modeladores e escultores, como por exemplo o grande escultor José Joaquim de Barros, conhecido como Barros Laborão, encarregado de executar os moldes em cera, ou ourives famosos, como João Luís Freire ou Firmino José Gorjão, entre outros.

Depois de muitas vicissitudes, a baixela acabou finalmente por ser entregue ao seu destinatário. Wellington, encantado com o esplendor e aparato das peças de requintada ourivesaria, usou-as sempre, a partir de 1816, no famoso Banquete de Waterloo, tendo encomendado novamente, em 1819, à firma Garrard, uma série de peças que verificou serem necessárias para o dito banquete. Apesar de possuir outra baixela encomendada por ele próprio, a baixela Assaye, em lembrança das suas vitórias na Índia, o general inglês fez questão de utilizar a baixela portuguesa nos grandes banquetes. Faustosos e concorridos, chegaram mesmo a ser retratados em pintura, como numa tela da autoria de William Salter, datada de 1833, em que a presença da baixela portuguesa é claramente identificável. Desta pintura, que hoje se conserva em Aspley House, tirou-se uma gravura que o Museu Nacional de Arte Antiga recebeu em doação particular recente.

O MNAA guarda, de todo este longo processo, apenas a colecção de desenhos executados por Sequeira. Nos anos noventa do século XX, um dos descendentes do Duque de Wellington, que mantinha em sua casa algumas das peças da baixela, colocou-as à venda. Ao saber desta notícia, técnicos do MNAA iniciaram diligências no sentido destas virem a ser compradas para Portugal, mas quando a transacção parecia eminente, o Estado inglês usou do direito de opção para que estas peças se juntassem ao restante grupo central da baixela. Quase na sua integridade, este conjunto maior da ourivesaria portuguesa pode hoje ser apreciado em exposição permanente na Aspley House, nº1 da cidade de Londres.

Conservadores de ourivesaria e escultura do Museu Nacional de Arte Antiga

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Apoteose de Lord Wellington, c.1812, MNAA