A vida no Estado Islâmico

O que é ser mulher ou criança no autoproclamado Estado Islâmico? O que se compra e o que falta no território? Como é aplicada a justiça? Três dezenas de pessoas que vivem ou viveram sob o regime extremista dão as respostas.

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As carrinhas brancas saem por volta da hora do jantar, carregadas de refeições quentes para os combatentes islâmicos solteiros da cidade de Hit, no Oeste do Iraque. Equipas de mulheres estrangeiras, que deixaram a Europa e vários países do mundo árabe para se juntarem ao Estado Islâmico (EI), trabalham em cozinhas comunitárias para preparar o jantar dos guerrilheiros, entregue nas casas que foram confiscadas a pessoas que fugiram ou foram mortas, diz o ex-presidente da câmara da cidade.

O EI tem atraído dezenas de milhares de pessoas de todo o mundo, prometendo o paraíso na pátria muçulmana que está a erguer nos territórios conquistados na Síria e no Iraque. Mas, na realidade, os islamistas criaram uma sociedade desigual, onde a vida quotidiana é radicalmente diferente para ocupantes e ocupados, de acordo com entrevistas conduzidas a mais de 30 pessoas que vivem ainda no EI ou fugiram recentemente.

Os combatentes estrangeiros e as suas famílias têm direito a habitação gratuita, serviços médicos, educação religiosa e até a uma espécie de entrega de refeições ao domicílio, de acordo com os entrevistados. Recebem salários pagos com os impostos e taxas que sobrecarregam milhões de pessoas que eles controlam, num território que agora tem o tamanho do Reino Unido.

Aqueles que vivem nas mãos do EI dizem que têm de enfrentar não só a brutalidade dos islamistas — que decapitam os seus inimigos e transformam em escravas sexuais as mulheres que pertencem às minorias — como também uma escassez extrema de vários produtos básicos.

Muitos têm electricidade durante apenas uma ou duas horas por dia e em algumas casas a água canalizada fica vários dias sem aparecer. Há poucos postos de trabalho, por isso uma grande parte não consegue pagar os preços exorbitantes dos alimentos, que em alguns casos mais do que triplicaram. Os cuidados médicos são deficientes, a maioria das escolas está fechada e as restrições às saídas para o mundo exterior são impostas pela força das armas.

Ao longo dos últimos dois anos, os islamista produziram uma torrente de propaganda sofisticada na Internet, que ajudou a convencer pelo menos 20 mil combatentes estrangeiros, muitos com famílias, a vir de locais tão remotos como a Austrália. A campanha, que é sobretudo veiculada pelo YouTube e pelas redes sociais, mostra uma terra de rodas gigantes e algodão doce, onde as populações locais convivem animadamente com estrangeiros fortemente armados.

Mas os entrevistados dizem que as suas vidas no “califado”, onde são governados por homens que impõem uma versão extremista da sharia (a lei islâmica), estão a transbordar de medo e escassez. “Regressámos à Idade da Pedra”, diz Mohammad Ahmed, de 43 anos, antigo funcionário da Liga Árabe de Deir al-Zour, uma cidade perto de Raqqa, a autoproclamada capital dos islamistas, no Norte da Síria. “Antes tínhamos uma casa linda, com chão em mármore e azulejos”, diz Ahmed, que fugiu da sua terra em Junho e que agora vive com outros 20 mil sírios no campo de refugiados de Azraq, na Jordânia. “Durante toda a nossa vida tivemos tudo o que precisávamos. Depois, quando eles chegaram, passámos a cozinhar numa fogueira na rua e a lavar as nossas roupas em baldes.”

Várias das pessoas ouvidas afirmam que na verdade o Estado Islâmico é menos corrupto e oferece serviços públicos mais eficazes, como a construção de estradas e recolha de lixo, do que os anteriores governos sírio e iraquiano. No Iraque, dizem alguns, os militantes sunitas tratam-nos melhor do que o Governo central de Bagdad, dominado por xiitas. Mas nenhuma das testemunhas afirma tolerar os islamistas e todos concordam que uma governação mais eficiente não ajuda a desculpar o comportamento fanático e brutal do EI.

“Nós odiamo-los”, diz Hikmat al-Gaoud, o antigo autarca de Hit, de 41 anos. Fugiu em Abril e agora divide o seu tempo entre Bagdad e Amã, na Jordânia.

O Estado Islâmico conquistou poder na sequência dos combates na Síria e no Iraque que já tinham deixado de rastos muitas das instituições públicas. Mas as pessoas entrevistadas afirmam que o EI apenas piorou a situação, de formas que poderão ser sentidas durante as próximas décadas — fazendo regredir os progressos alcançados no ensino público, arruinando a infra-estrutura médica, criando um sistema judicial que assenta no terror e expondo toda uma geração de crianças a uma violência, física e psicológica, devastadora e grotesca.

Para as mulheres, viver no EI significa frequentemente serem sujeitas a uma linha de montagem que serve para garantir noivas aos combatentes, ou às vezes serem sequestradas e levadas para casamentos forçados.

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Hikmat al-Gaoud, o antigo autarca de Hit, diz que o EI leva rapazes para campos de treinos "e eles regressavam combatentes. No meu bairro, todos foram, menos o meu filho, que se recusou" Hikmat al-Gaoud

Muitos dos entrevistados apenas quiseram dar o primeiro nome ou recusaram-se a ser identificados fosse de que forma fosse, para proteger a sua segurança e a das suas famílias que ainda vivem em território controlado pelo EI. Foram entrevistados por Skype ou telefone, a partir da Síria e do Iraque, ou pessoalmente, no Iraque, Turquia e Jordânia.

Aqueles que falaram a partir de áreas nas mãos dos islamistas fizeram-no correndo grande perigo, afirmando que estes controlam rigidamente o acesso à Internet. Concordaram em falar para poder contar a sua história sobre a vida dentro do “califado” do Estado Islâmico.

Quase todos os entrevistados dizem ter testemunhado uma decapitação ou outro castigo igualmente selvagem. É praticamente impossível confirmar estes testemunhos, tal como é impossível verificar as afirmações feitas através do material de propaganda que é editado pelo EI. Os militantes raramente permitem a jornalistas ou outros observadores independentes entrar no seu território e já divulgaram vídeos de decapitações de vários capturados.

As entrevistas, conduzidas ao longo de vários meses, foram combinadas bastante ao acaso ou através de contactos mantidos há tempo na região. Apesar de vários activistas terem sido ouvidos, o Washington Post não quis depender deles para estabelecer outros contactos. No campo de Azraq, os jornalistas analisaram os registos de chegadas e procuraram aqueles que tinham partido recentemente das áreas controladas pelo EI. Muitas das conversas duraram duas horas ou mais.

Os militantes controlam pequenas comunidades rurais, mas também grandes zonas urbanas, incluindo Mossul, uma cidade iraquiana com mais de um milhão de pessoas. As suas políticas diferem de região para região, por isso não há um estilo de vida único e uniformizado; mas nas entrevistas houve temas que apareceram consistentemente: mulheres, saúde, educação, justiça e economia. (...)

“A vida no Daesh é um pesadelo todos os dias”, diz uma antiga professora de Matemática que vive em Mossul, usando o nome árabe do Estado Islâmico. “Temos um futuro incerto”, afirma, pedindo para não ser identificada. “Talvez o Daesh nos mate, ou talvez morramos na guerra, ou talvez depois. Aquilo por que estamos a passar agora é uma morte lenta.”

Os islamistas criaram checkpoints para impedir as pessoas de sair. Mas, segundo os entrevistados, há cada vez mais redes de tráfico para ajudar quem decide fugir e estes estão a entrar em cada vez maior número na Jordânia, Turquia, Líbano e nas áreas do Iraque que não estão sob controlo do EI. Responsáveis da ONU afirmam que 60% dos refugiados que atravessaram recentemente a fronteira entre a Síria e a Jordânia fugiam das áreas controladas pelos islamistas.

A propaganda apresenta-os como libertadores; num vídeo recente apareciam, armados, a distribuir doces num lar da terceira idade. Mas, segundo as testemunhas, a maior parte da população vê-os como uma força ocupante impiedosa e tenta manter-se à distância o mais possível. “Mesmo que nos cruzemos na rua ou em lojas, não há convívio”, relata um activista que se identifica como Abu Ibrahim al-Raqqawi, natural de Raqqa, e que gere um site chamado Raqqa Is Being Slaughtered Silently. As pessoas de Raqqa, diz, “sentem-se estrangeiras na sua própria cidade”.

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Faten Humayda tem 70 anos e deixou a sua terra perto de Raqqa em Maio. Vive no campo de refugiados de Azraq e diz que a violência faz aumentar o ódio das populações em relação aos islamistas CHARLES OMMANNEY/ The Washington Post

O EI tem tido algum êxito no recrutamento da população local. As pessoas ouvidas dizem que muitos dos seus amigos e vizinhos na Síria e no Iraque escolheram juntar-se aos islamistas, tornar-se combatentes, professores ou funcionários dos seus gabinetes governamentais. Alguns fazem-no porque acreditam no seu objectivo de unir o mundo sob a sua interpretação radical da lei islâmica. Mas a maioria é por desespero. Em locais onde o preço da comida disparou e muitas pessoas vivem com pouco mais que pão e arroz, alguns homens concluíram que tornarem-se guerrilheiros do EI é a única forma de sustentar a família.

“Não há trabalho, por isso temos de nos juntar a eles se queremos sobreviver”, diz Yassin al-Jassem, de 52 anos, que fugiu de sua casa em Raqqa em Junho. “Tantos habitantes locais se juntaram a eles. A fome empurrou-os para o Daesh.”

Peter Neumann, director do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização da Violência Política do King’s College, em Londres, afirma que embora os combatentes estrangeiros tenham dado um fôlego ao EI, “a longo prazo, acabarão por se tornar um fardo”. O investigador recorda que as tribos locais revoltaram-se contra a Al-Qaeda no Iraque em meados dos anos 2000 em parte porque viam o grupo como uma organização estrangeira. É da opinião que as pessoas que estão agora sob o controlo do EI poderão fazer o mesmo — sobretudo no Iraque.

No entanto, os entrevistados afirmam que o ISIS não poupa esforços no que se refere à supressão de potenciais levantamentos, matando qualquer um que suspeite de deslealdade.

Faten Humayda, uma avó de 70 anos que deixou a sua terra perto de Raqqa em Maio e que agora vive no campo de Azraq, é da opinião de que a violência faz aumentar o ódio das populações em relação aos islamistas, mas também cria desconfiança entre os locais. E é mais difícil a qualquer movimento de resistência formar-se quando as pessoas pensam que os amigos e vizinhos podem ser informadores. “Eles põem-nos uns contra os outros”, afirma Humayda.

Ahmed, que também abandonou a sua terra nas proximidades de Raqqa, em Junho, adianta que alguns dos combatentes árabes tentam misturar-se com a população local, mas que os europeus e os não árabes nunca o fizeram. E apesar de o EI proclamar que o seu objectivo é proporcionar uma vida melhor aos muçulmanos, parece estar sobretudo concentrado nos combates com os outros grupos rebeldes e as forças do Governo. “Eles foram sempre muito agressivos e parecem zangados”, diz. “Estão ali para lutar, não para governar.”

Na sua tenda de zinco em Azraq, Jassem conta que quando vivia sob o controlo do EI o neto de dois anos desenvolveu um tumor no cérebro. Os médicos pediam quase 700 euros para o tratar. Jassem, que é agricultor, estava sem trabalho desde que os islamistas tomaram a sua vila. Estava desesperado, e por isso em finais de Maio foi implorar pela vida do neto. O EI fez uma proposta: “Eles disseram-me: ‘Se nos deres o teu filho para ele lutar por nós, nós pagamos o tratamento do teu neto’”, recorda. A ideia de ter um dos filhos a combater pelo Estado Islâmico revirava-lhe o estômago, e a ideia de perder o neto despedaçava-lhe o coração. Então pegou na família e fugiu no camião de um traficante. Agora, o filho está a pedir apoio médico às autoridades jordanas para salvar o menino. “Nunca mais vou voltar para a Síria”, diz Jassem, na sua tenda de 5,5 por 3,5 metros, olhando para o vazio do deserto jordano. “Já não é a minha Síria.”

I Parte Até que o martírio nos separe

Algures no território sírio controlado pelo Estado Islâmico, uma jihadista holandesa põe um post no Twitter com a fotografia de um cheesecake de bolachas Oreo que acabou de fazer. É uma vívida acção de propaganda que partilha com outros que estejam a pensar viajar para a Síria para se juntar à causa. Mas também tem um toque pessoal islamista: o cheesecake foi fotografado ao lado de uma granada.

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Crianças fugidas de Mosul num campo de refugiados perto de Arbil reuters

A cerca de 320 quilómetros para sul, num campo de refugiados da Jordânia onde faz um calor abrasador, Rudeina, de 17 anos, diz que a sua vida no Norte da Síria, numa zona controlada pelo Estado Islâmico, e que abandonou em Abril, era miserável. Morava numa localidade perto da cidade de Raqqa, e conta que durante mais de um ano não saiu de casa, com medo de ser raptada ou forçada a casar com um combatente estrangeiro.

“Eles cortaram a Internet, mas nós já nem a queríamos”, diz ela. “Se olhássemos para a Internet, veríamos como as pessoas vivem lá fora. Isso entristecia-nos. Ver o mundo lá fora era mais uma tristeza.”

Na propaganda do EI, a vida das mulheres do autoproclamado califado está repleta de amor, crianças e alegrias domésticas, tais como um bolo de Oreos. Mas a realidade é, frequentemente, bem mais dura para as que abandonam o mundo árabe, a Europa, os Estados Unidos para ir para lá, afirmam especialistas que analisam as contas nas redes sociais ligadas ao EI. Essas mulheres, que geralmente são atraídas por ideias românticas de apoio aos revolucionários e da vida num estado que venera a sua religião, vêem-se rapidamente num sistema institucionalizado, quase uma linha de montagem, que fornece esposas, sexo e filhos aos combatentes. E quando os maridos são mortos, espera-se que celebrem o seu “martírio” e rapidamente casem com outros islamistas.

A situação é ainda pior para milhões de mulheres na Síria e no Iraque que viram as suas cidades e vilas ser tomadas pelo EI, revelam os entrevistados, com testemunhos semelhantes a outros dados a organizações de ajuda humanitária e activistas dos direitos humanos.

“O nosso maior medo era irmos para uma prisão de mulheres”, conta Rudeina, sentada na barraca de zinco onde agora vive, no campo de Azraq. Recusou-se a dar o apelido por razões de segurança. Diz que os islamistas usariam qualquer pretexto para prender mulheres. “Usam as mulheres prisioneiras como esposas de combatentes estrangeiros. Se fores parar a uma prisão, sabe-se lá o que pode acontecer.”

A mãe, Nabiha, de 42 anos, conta que esse foi o destino da filha de um vizinho, que foi presa por o marido ser soldado do Exército sírio. “Eles disseram-lhe: ‘Ou casas com um combatente ou cortamos-te a cabeça e penduramo-la na praça.’ Então, ela casou com um combatente e nunca mais soubemos dela.”

De acordo com a ideologia do Estado Islâmico, o lugar da mulher é em casa, a cuidar do marido e a procriar. “O criador decidiu que não há responsabilidade mais digna para ela do que ser a esposa do seu marido”, refere o manifesto “Mulheres do Estado Islâmico”, publicado este ano pela Brigada al-Khanssaa, um grupo feminino do “califado”. O documento foi traduzido para inglês por Charlie Winter, investigador da Quilliam Foundation, em Londres, e oferece a maior descrição feita até aqui sobre a forma como as mulheres são tratadas pelo EI. Determina que as mulheres só devem sair de casa para circunstâncias específicas, incluindo estudar religião ou trabalhar em situações em que as mulheres estão absolutamente segregadas. O manifesto rebela-se contra os valores ocidentais.

As mulheres que optam por se juntar ao EI, quer sejam estrangeiras ou locais que acreditam na sua ideologia, parecem aceitar e até apreciar o seu novo papel. Algumas acabam por se casar por amor e apoiam entusiasticamente um sistema que rejeita os ideais ocidentais de moda e beleza. Mas muitas locais acham que as restrições são exageradas, antiquadas e aterrorizadoras, segundo as entrevistas.

As regras são particularmente chocantes para as habitantes das zonas urbanas, como Raqqa ou Mossul, onde as mulheres se vestiam modestamente, mas muitas usavam simplesmente um lenço sobre o cabelo, calças de ganga e sandálias. Agora, são obrigadas a usar, em público, véus que lhes cobrem o rosto todo e vestidos, e não podem sair de casa sem a companhia de um homem.

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Duas mulheres no campo de refugiados de Azraq. As suas famílias estão ainda na Síria e por temerem represálias só aceitaram ser fotografadas de costas Charles Ommanney/The Washington Post

Amina Mustafa Humaidi, de 40 anos, fugiu de Raqqa em Maio, e diz que nunca deixava a filha de nove anos sair à rua, com medo dos radicais. “Ouvimos muitas histórias de sequestros de raparigas nas ruas por parte de guerrilheiros estrangeiros”, conta no seu abrigo em Azraq. “Quando eles chegaram, anunciaram que iriam buscar uma rapariga a cada casa e casá-la com combatentes estrangeiros. Nunca aconteceu. Acho que só disseram isso para nos aterrorizar.”

Mas o medo de Humaidi pela sua filha é justificado: o manifesto diz que as raparigas podem casar-se a partir dos nove anos.

Para além disso, o EI também tem feito sistematicamente das mulheres escravas sexuais, nomeadamente mulheres e meninas da minoria yazidi no Iraque, referem grupos como a Human Rights Watch (HRW) e a Amnistia Internacional. Os próprios militantes, na sua publicação Dabiq, de Outubro de 2014, anunciaram que mulheres yazidis tinham sido oferecidas a combatentes como “despojos de guerra”.

Um documento oficial do EI publicado no final do ano passado definia as linhas mestras de como as escravas devem ser tratadas, declarando que é permitido espancá-las e ter relações sexuais com elas antes de chegarem à puberdade, adianta a HRW.

Os pais de Kayla Mueller, uma activista humanitária na casa dos 20 anos que foi feita refém, disseram em Agosto aos jornalistas que a filha tinha sido levada como “esposa” e foi repetidamente violada por Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do grupo, de acordo com uma adolescente yazidi que estava com ela. Mueller morreu nas mãos do EI, mas não se conhece a causa exacta da sua morte.

Entre os seus próprios membros e milhões de mulheres iraquianas e sírias que vivem nos territórios conquistados, os islamistas criaram uma complexa arquitectura social para garantir aos combatentes um fluxo constante de noivas e escravas sexuais.

Quando um guerrilheiro estrangeiro chega ao Estado Islâmico com a mulher e os filhos, recebe uma casa, que geralmente foi confiscada a famílias locais que fugiram ou foram mortas, ou forçadas a sair.

As estrangeiras solteiras são obrigadas a ficar numa pensão, onde recebem comida e uma “mesada”, segundo um relatório recente do Instituto para o Diálogo Estratégico, de Londres, que analisou as experiências de dezenas de mulheres estrangeiras seguindo os seus posts nas redes sociais. O investigador Shiraz Maher, do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização e Violência Política, afirma que os combatentes solteiros estão autorizados a entrar na pensão, conhecer as mulheres e pedir-lhes que levantem os véus. Se gostarem do que vêem, podem ficar imediatamente noivos. Maher adianta que as mulheres no EI têm alguma palavra a dizer sobre com quem casam, mas não muita. “O processo não é longo”, afirma. “Conhecem-se numa manhã e à tarde estão noivos.”

Ainda assim, e porque as famílias sírias locais mantêm as filhas longe dos jihadistas, tem havido escassez de mulheres para os combatentes. Alguns, incluindo um britânico, queixam-se no Twitter da incapacidade de encontrar uma esposa — um raro sinal de discórdia na abundante propaganda cor-de-rosa. “Alguns destes tipos estão a ficar realmente frustrados”, afirma Maher.

Uma mulher que diz chamar-se Shams, uma agente de propaganda online do EI, descreveu o seu casamento na conta de Tumblr. Diz que esteve solteira durante meses na Síria, onde chegou em Fevereiro de 2014, mas que viver assim era “muito difícil” e por isso optou por casar com um combatente, com quem se encontrara duas vezes. Fez um post com uma fotografia sua de véu branco, só com os olhos a verem-se, e o marido com uma camisa de manga curta branca e uma gravata preta muito fina. A legenda: “Casamento na terra da jihad. Até que o martírio nos separe.” Shams identifica-se como uma médica de 27 anos da Malásia e o marido é marroquino. Postou ainda aquilo que disse ser uma selfie dos recém-casados: um estetoscópio pendurado numa AK-47.

Muitas mulheres estrangeiras que vão para o EI sentem-se frustradas porque não partem para casar, mas para lutar, o que é proibido. “Temos vistos várias mulheres que não estão contentes com o facto de não poderem combater e que o expressam claramente”, afirma Peter Neumann. As queixas, adianta, reflectem o fosso entre as sociedades ocidentais — sobretudo da Europa —, onde estas mulheres cresceram, e a sua nova casa, que é moldada pela sociedade islâmica de há 1400 anos. “Obviamente são atraídas pela ideologia medieval, mas, ao mesmo tempo, algumas das suas atitudes são muito ocidentalizadas”, diz Neumann.

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Raqqa: Mulher em fuga depois de ataques do exército sírio reuters

Erin Marie Saltman, investigadora do Instituto para o Diálogo Estratégico, adianta que a frustração entre as mulheres estrangeiras era visível através dos seus posts cada vez mais duros. “Há mais mulheres agora, e mais mulheres ocidentais, e elas estão na verdade a revelar uma voz mais violenta.”

Muitas, acrescenta Saltman, ficam chocadas por descobrir que a vida no EI está repleta de violência e muita privação, incluindo escassez de electricidade e água potável — longe do paraíso que é apregoado pela propaganda. “Quando chegam ao Estado Islâmico, nunca é aquilo que diz na embalagem”, diz a analista. “Quase são forçadas a radicalizar-se ainda mais para justificar a viagem que fizeram, para justificar terem deixado as suas casas para trás.”

Algumas acabam por ter um papel de quase combatentes nas brigadas policiais femininas que aplicam as regras do EI, controlando sobretudo a forma de vestir das mulheres e as suas actividades. Outras ajudam a revistá-las em checkpoints.

Mas, de acordo com o manifesto, as mulheres só receberão ordens para combater se for emitida uma fatwa declarando que a “situação dos muçulmanos é desesperada”.

Para Neumann, é inevitável que o EI comece a recorrer a mulheres como bombistas suicidas, como fez, no Iraque, a Al-Qaeda, que deu origem ao Estado Islâmico. Há alguns sinais de que algumas têm já guardados em casa coletes suicidas. O relatório do Instituto para o Diálogo Estratégico cita uma mulher que diz chamar-se Umm Khattab e que, em Dezembro do ano passado, escreveu no Twitter que ouviu tiros em Raqqa e ficou com medo de que a sua casa fosse atacada — de tal forma que, escreveu, “pus o cinto [de explosivos] e tudo”.

Por definição, o Estado Islâmico estará quase sempre em guerra, já que o seu objectivo declarado é criar um califado mundial por imposição das armas. Isso significa um ciclo de morte infindável dos seus combatentes e incontáveis jovens viúvas que serão encorajadas a voltar a casar com outros guerrilheiros.

Apesar de a maioria dos casamentos no EI parecerem apenas combinações pragmáticas para a procriação, Saltman refere que muitos envolvem, no entanto, laços profundos entre marido e mulher. “Há um elemento romântico, de escape, para muitas destas mulheres”, acrescenta. “Quando se é novo, quando se perdeu a virgindade com alguém, teve-se um filho com essa pessoa, ela torna-se o nosso pilar. Não é o tipo de amor que vemos num filme ocidental sobre adolescentes, mas é uma ligação a alguém. E é um amor muito profundo à sua maneira.”

II PartePara os rapazes, Deus e armas. Para as raparigas, Deus e cozinhados

A guerra fechou a maior parte das escolas na terra de Yahyah Hadidi, em 2013, com o agravamento dos combates entre os rebeldes e o Governo sírio. Hadidi, com um diploma acabado de tirar e uma grande paixão pela Educação, decidiu fazer alguma coisa em relação a isso. Começou a dar aulas de improviso numa escola abandonada do seu bairro, atraindo mais de 50 rapazes e raparigas por dia. Até que, no início de 2014, chegou o Estado Islâmico e ordenou o encerramento de todos os estabelecimentos de ensino.

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Mohammed Ahmed com a família em Azraq. Fugiram de Deiral-Zour, na Síria CHARLES OMMANNEY/The Washington Post

Hadidi ficou desolado e pediu autorização para reabrir a escola, na vila de Manbij, entre as cidades de Raqqa e Aleppo, no Norte. Um combatente saudita, alto e barbudo, disse-lhe que, se queria ensinar, poderia dar aulas de religião na mesquita, apenas a rapazes e sob supervisão do EI. “Eu não podia fazer isso”, diz Hadidi, de 26 anos, que em Julho fugiu da Síria com a mulher e que agora vive no campo de refugiados de Azraq. “Eu queria dar uma educação boa às crianças e não fazer-lhes lavagens ao cérebro.”

O EI arrasou com a educação pública de milhões de crianças, agravando os danos provocados por anos de uma guerra devastadora na Síria e no Iraque, dizem as três dezenas de entrevistados.

De acordo com a propaganda do EI, o ensino primário é um pilar da vida quotidiana do autoproclamado califado. Mas estes entrevistados dizem que os islamistas praticamente o eliminaram. Fecharam muitas escolas públicas, e, em alguns casos, reabriram-nas depois de darem nova formação a professores e readaptarem os currículos à sua interpretação extremada do islão. Eliminaram disciplinas como música, arte e geografia.

Os testemunhos recolhidos sugerem que o sistema de educação do EI, segregado e desigual, não tem conseguido atrair muito apoio popular. Os jovens deixam de ir à escola e os combatentes estrangeiros enviam os filhos para instituições que os doutrinam.

Os testemunhos reflectem largamente as conclusões de analistas que estudam o Estado Islâmico. “O objectivo do sistema de educação é doutrinar as crianças”, comenta Peter Neumann. “Todos os movimentos totalitários, os nazis ou o que for, põem grande ênfase no doutrinamento dos jovens e na formação de uma geração que constituirá a sociedade combativa que eles pretendem”.

O EI faz parte da complexa rede de problemas da Síria, e os jihadistas têm desempenhado um papel significativo na regressão de décadas no ensino público. Um relatório de Março da Save the Children concluiu que as inscrições de alunos diminuíram para 50%, quando eram de praticamente 100% antes do início da guerra civil, em 2011.

O EI tem tentado afincadamente que as crianças frequentem as suas escolas religiosas, nomeadamente através do uso do “Daesh Bus”. Hadidi refere que os radicais atravessam cidades e vilas num velho autocarro branco e chamam as crianças através de um altifalante, desafiando-as para uma boleia ou para ver desenhos animados num grande ecrã de televisão. Mas quando os miúdos entram, adianta, recebem sermões de islamismo extremista e panfletos para distribuírem aos pais.

“Isto é muito perigoso; o nosso país está a regredir 20 anos”, diz Hadidi. “Não só as nossas crianças não estão a receber educação, como estão a ser arrastadas para caminhos errados. Vivíamos numa zona rural e levámos muito tempo a convencer os camponeses pobres a enviarem os miúdos para a escola. E agora isso está a morrer.”

Em vez de aprender a ler e escrever, os rapazes aprendem a lutar. Muitos dos entrevistados adiantam que existem campos de treino militar para rapazes que são na maioria adolescentes, mas onde também se encontram meninos de sete anos.

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Esta criança iraquiana fugiu da violência imposta pelo EI em Mosul. Está a viver no campo de refugiados de Baherka, em Erbil AHMED JADALLAH/reuters

Hikmat al-Gaoud diz que o EI criou um campo de treino para rapazes numa mina de sal abandonada nas imediações da cidade. “Eles levavam-nos durante três ou quatro meses para os treinar e eles regressavam combatentes”, afirma numa entrevista em Amã. “No meu bairro, todos foram, menos o meu filho, que se recusou.”

Gaoud afirma que muitos rapazes sunitas de Anbar se juntaram ao EI devido à sua revolta contra o Governo de Bagdad, dominado por xiitas, que vêem como demasiado próximo do Irão, também xiita. Mas alguns dos entrevistados apontam outras razões. “Para os jovens, não se trata propriamente de ideologia”, diz Mohammad Ahmed, de 43 anos, que vivia numa zona rural perto de Raqqa até fugir com a família para a Jordânia, em Junho. “Vêem os amigos alistarem-se e a voltarem dos treinos com uma AK-47 e com medalhas no peito. Pensam: ‘O meu vizinho agora é importante e eu também quero ser importante’.”

O seu filho de 14 anos, Ziad, diz que pelo menos 50 rapazes da sua escola, que foi encerrada, se juntaram aos militantes. “Adoram ter as suas armas”, comenta Ziad.

O Estado Islâmico não atribui muita importância à educação das raparigas, a julgar pelo manifesto “Mulheres do Estado Islâmico”. Satiriza as mulheres ocidentais que se dedicam a “ciências inúteis… que estudam as células cerebrais de vacas, grãos de areia e as artérias de um peixe!”

O documento salienta que as mulheres não podem cumprir os seus papéis de esposas e mães se forem “iletradas ou ignorantes”. Mas adianta que a educação das raparigas deve ir dos sete aos 15 anos e focar-se na religião e “aprendizagem de tarefas como têxteis, costura e cozinha básica”.

Nabiha, uma mãe de Raqqa, de 42 anos, entrevistada no campo de refugiados de Azraq, diz que os islamistas descobriram que a sua sobrinha estudava numa universidade numa zona da cidade de Homs controlada pelo Governo. Confrontaram-na com isso e ameaçaram executá-la caso a filha não regressasse a Raqqa em 30 dias. “Todos sabemos que esta gente não tem misericórdia, por isso ela mandou vir a filha”, conta.

Nabiha conta que os militantes vão porta a porta à procura de pessoas que se tenham licenciado: “Reúnem os diplomas e queimam-nos numa grande fogueira.”

III ParteÉ como se vivêssemos no séc. XVIII

Antes de o Estado Islâmico ter capturado a cidade de Faten Humayda, no Norte da Síria, há quase dois anos, uma bilha de gás propano para o seu fogão custava-lhe o equivalente a 50 cêntimos. Mas quando os islamistas se instalaram, o preço subiu para os 27 euros, obrigando Humayda a cozinhar numa fogueira no quintal.

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Campo de refugiados em Azraq, Jordânia CHARLES OMMANNEY/ The Washington Post

“Antes era um paraíso”, diz, descrevendo a sua antiga vida, passada nas margens do rio Eufrates. Agora está sentada numa barraca de zinco de Azraq, onde chegou com ajuda de traficantes.

O Estado Islâmico tem tentado fazer aquilo que a Al-Qaeda e outros grupos jihadistas nunca tentaram sequer: criar um estado, com governo e instituições e uma economia funcional. Apesar de os jihadistas terem algum sucesso de governação, para milhões de pessoas que estão sob o seu comando tem sido impossível encontrar — ou conseguir pagar — comida, combustível e outras necessidades básicas.

As entrevistas conduzidas neste campo da Jordânia sugerem que o Estado Islâmico criou um sistema no qual a maior parte dos habitantes locais luta por sobreviver, enquanto os ocupantes têm electricidade e alimentação gratuitas e até produtos importados, incluindo bebidas energéticas, como Red Bull.

As pessoas ouvidas referem que é mais fácil encontrar alimentos nas áreas onde se cultivam frutas e vegetais ou onde há pastagens de animais. Mas, com o encerramento das rotas tradicionais de abastecimento devido aos combates, até produtos básicos, como açúcar ou leite em pó para bebé, têm de ser contrabandeados e são terrivelmente caros.

A situação é ainda mais grave devido ao número elevado de desempregados. Fábricas e grandes lojas fecharam as portas, por os donos terem fugido ou porque as matérias-primas de contrabando são demasiado dispendiosas.

“Eu só cozinhava lentilhas com arroz. Era tudo o que tínhamos”, afirma Amina Mustafa Humaidi, que recentemente abandonou a cidade de Raqqa com a família e que agora vive no campo de Azraq, no deserto jordano, a 65 quilómetros de Amã.  Diz que no ano passado o marido foi abatido a tiro pelos combatentes do EI. Depois de ele morrer, a família dele deu-lhe uma panela de pressão eléctrica, mas só tinha uma hora por dia de electricidade. “Quando a electricidade chegava, meu Deus! Eu ia a correr cozinhar”, conta. “Se deixasse passar essa hora, os meus filhos não comiam. Tínhamos frigorífico, mas não podíamos usá-lo.”

Sentada no chão de cimento, Humaidi conta que o filho mais novo tinha nove meses quando os islamistas chegaram a Raqqa, e de repente ela deixou de conseguir encontrar leite em pó para lhe dar. “O Estado Islâmico não trouxe ordem. Trouxe caos”, diz.

Os novos governantes também se mostravam contra a ajuda humanitária estrangeira. Em Abril, apareceram fotografias em sites do Estado Islâmico que mostravam islamistas a queimar dois carregamentos de frango vindos dos Estados Unidos e destinados às vítimas da guerra civil síria.

Os cuidados médicos e os medicamentos também escasseiam, e muitos hospitais só tratam de membros do EI ou reservam as melhores equipas e equipamentos para eles, segundo relatos de pessoas entrevistadas na Síria e no Iraque.

Muitos profissionais de saúde fugiram quando os combatentes do EI chegaram. Agora, se um médico pedir autorização para se deslocar para fora das áreas controladas pelos islamistas, é-lhe exigido que tenha até cinco pessoas a garantir que regressará, dizem testemunhas. Se não voltar, os familiares ou amigos que apresentaram a garantia serão punidos ou mortos.

Em Mossul, uma cidade com mais de um milhão de pessoas, os médicos queixam-se de que lhes falta praticamente tudo: radiologistas, anestesias, sangue. “Todas as dificuldades que possa imaginar nós temos”, declarou uma médica iraquiana do hospital de Mossul.

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Bandeira do EI em Raqqa em Junho de 2014 reuters

A mesma profissional adianta que o hospital deixou de fazer cirurgias preventivas, reservando os recursos somente para as operações destinadas a salvar vidas. Os cortes de energia significam que o hospital tem de depender de geradores, mas muitas vezes é difícil encontrar combustível para eles. Se não houver electricidade para as bombas de água, não há água. “Imagine um hospital sem água”, diz a médica. “É como se estivéssemos a viver no século XVIII. Estou a tentar sair de Mossul, mas tenho uma casa boa, que resultou dos meus 25 anos de trabalho. Não posso deixar a minha casa, é o fruto da minha vida. Mas isto não é vida.”

Para controlar as pessoas que governa, o EI criou governos locais que regulam serviços como licenças de construção ou de pesca. (Pescar com dinamite ou baterias eléctricas é agora proibido.)

Nas entrevistas, algumas pessoas referem que os serviços públicos pararam, enquanto outras dizem que o EI os melhorou.

Um líder religioso de Fallujah, cidade no Centro do Iraque, que pediu para não ser identificado por razões de segurança, disse numa entrevista por telefone que é contra os islamistas, mas que eles instalaram um governo eficiente. Adianta que criaram gabinetes que emitem licenças de casamento e bilhetes de identidade ou resolvem contenciosos. Funcionários pagos pelo EI varrem as ruas e arranjam geradores que garantem iluminação em algumas ruas, diz.

Também instalaram tribunais da sharia [lei islâmica] e uma delegação da Hisbah, uma espécie de departamento da polícia religiosa.

“Eles controlam os preços; se alguém subir demasiado os preços, é punido”, afirmou o responsável religioso.

Várias das pessoas entrevistadas referiram que nos anteriores governos sírios e iraquianos pediam-se subornos descaradamente, mas que o EI parece ter regras mais estritas contra o recebimento de luvas por parte dos seus oficiais.

“As coisas estão bem regulamentadas”, afirma um empresário de Raqqa, entrevistado via Skype, reconhecendo com relutância que alguns dos engenheiros, arquitectos e outros profissionais com habilitações recrutados pelos islamistas em várias partes do mundo melhoraram os serviços.

“Já não vemos lixo atirado para o chão como era costume”, exemplifica.

Mas também há quem diga que os membros do EI estão muito mais preocupados em combater do que em melhorar a vida do dia-a-dia dos cidadãos.

O Estado Islâmico é financiado através do desvio de petróleo, assalto a bancos, extorsão, sequestros, venda de antiguidades no mercado negro — e da cobrança de impostos às populações locais. As pessoas ouvidas pelo WP dizem que costumavam reservar entre 2,5% e 10% dos seus rendimentos para o zakat, uma contribuição de caridade que os muçulmanos fazem para ajudar os pobres. Mas agora o EI exige que esses pagamentos sejam feitos à própria organização.

O activista Abu Ibrahim al-Raqqawi acusa o EI de usar o zakat e outros impostos e taxas para pagar aos seus combatentes e outros estrangeiros que vieram juntar-se ao Estado Islâmico. Os estrangeiros não pagam impostos.

Humayda, a avó que fugiu de uma aldeia perto de Raqqa, acusa os islamistas de terem levado 10% da colheita de trigo da sua família, argumentando que era para os pobres. Diz que uma ou duas vezes por ano o EI distribui um carregamento de comida na aldeia e que quem a queria tinha de lutar por ela.

“Acho que estão a tentar que fiquemos iguais a eles”, afirma. “E depois dão chicotadas aos pobres que não pagam os impostos.”

IV Parte  A lei do medo e da violência

Os jihadistas arrastaram o homem vendado para a praça central de uma localidade perto de Raqqa. Foi numa sexta-feira, logo a seguir às orações, e o mercado estava a abarrotar de pessoas. Gritaram que ele era um espião do Governo e retiraram-lhe a venda para que todos lhe pudessem ver a cara. Nabiha, uma mulher de 42 anos que fugiu da cidade e vive agora em Azraq, lembra-se de como se sentiu enojada pela forma como os radicais forçaram o homem a baixar-se até um bloco de madeira, daqueles que são usados no abate de ovelhas, e levantaram um cutelo de talhante. “Bastou um golpe”, diz Nabiha, que pediu que o seu apelido não fosse usado por razões de segurança. “O corpo foi para um lado, a cabeça para outro. Nunca me vou esquecer.”

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Apoiantes do Estado Islâmico festejam perto de Aleppo Fadi al-Halabi/reuters

O EI usa o seu brutal e tantas vezes arbitrário sistema de justiça para manter sob controlo os milhões de pessoas que vivem nos seus territórios. Com as decapitações e crucificações públicas de pessoas que podem ser apenas suspeitas de deslealdade, criaram uma cultura de horror e pavor tal que praticamente ninguém tem coragem de contestar.

“Para vocês que nos vêem de fora pode parecer tão simples perguntar: ‘Mas por que é que não há mais pessoas a enfrentar o Daesh? Por que é que não se ouvem mais vozes a contestá-los?’”, diz um homem de negócios em Raqqa com quem falámos por Skype e que recusou ser identificado. “Mas isso é porque não são vocês que têm de viver com eles, debaixo das suas ordens.”

Segundo os entrevistados, quem vive sob o jugo do EI está sujeito a um regime extremo de leis impostas pela polícia e pelos juízes, na sua maioria estrangeiros vindos da Tunísia, Líbia, Arábia Saudita, Rússia, França, Grã-Bretanha e outros países. Os relatos são considerados fidedignos e consistentes com as conclusões dos analistas que se têm dedicado ao estudo do EI e de activistas dos direitos humanos.

As decisões dos tribunais assentam numa interpretação extrema da sharia. E para algumas localidades é mesmo deslocado um departamento da polícia feminina para reforçar as disposições legais para as mulheres e garantir que nas escolas, nos hospitais e noutros serviços públicos reina a segregação por género. 

Para todos os que fumam cigarros, bebem álcool, mantêm as lojas abertas durante as horas de oração ou se vestem à ocidental está-lhes reservado serem chicoteados em público — ou pior.

Yassin al-Jassem lembra-se bem do dia em que o EI apanhou um adolescente, filho de um vizinho, a fumar um cigarro. “Prenderam-lhe a mão esquerda em cima de um bloco de madeira e com uma enorme faca de talhante deceparam-lhe dois dedos, precisamente aqueles com que segurava o cigarro”, conta Yassin. “Depois, atiraram-no para o meio da rua, entregue à sua sorte.”

Os suspeitos de espionagem ou de colaboração com os inimigos do EI são executados. As mortes acontecem geralmente em dias de mercado ou depois das orações das sextas-feiras, em locais de grande visibilidade, de forma a garantir que um número máximo de pessoas assiste à barbárie.

Yahyah Hadidi diz que a principal praça da sua cidade, perto de Aleppo, ficou conhecida como “Praça do Julgamento” por ser o palco de execuções todas as sextas-feiras. “Puseram lá um mastro em forma de L e dependuravam os corpos e as cabeças com ganchos de talho”, diz. “Querem aterrorizar as pessoas. Muitos muçulmanos são boas pessoas e como não pensam como eles são chacinados”, acrescenta.

Ahmed Ali Humaidi, 19 anos, fugiu recentemente com a sua família de Raqqa para a Jordânia. Diz que os revolucionários decapitam as pessoas numa rotunda mesmo no centro da cidade e deixam as cabeças penduradas em postes. “A minha vida sempre me correu bem e nunca tinha sentido medo. Mas quando vi o que acontecia, aí pela primeira vez senti medo”, relata.

De acordo com alguns dos entrevistados, o sistema de justiça criminal do EI é menos corrupto do que as instituições sírias sob governo do Presidente Bashar al-Assad. E no Iraque houve quem se tivesse juntado ao EI porque os sunitas preferem isso a viver sob o Governo de Bagdad, dominado por xiitas.

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Centro de Qusair, quando as tropas fiéis a Assad reconquistaram a cidade em 2013 reuters

Hikmat al-Gaoud, o antigo presidente da Câmara de Hit, no Iraque, tem tentado recrutar nómadas sunitas para lutar contra o EI, que diz odiar. Mas acrescenta que há iraquianos que se juntaram aos revolucionários com o seguinte discurso: “O Governo do Iraque não me me respeita, nem à minha mulher e à minha família. Se tiver de andar de mãos dadas com o mal para poder viver a minha vida com dignidade, fá-lo-ei. E o Estado Islâmico é o menor dos dois males.”

Por outro lado, Jassem afirma que o sistema de justiça do EI é caprichoso e abusivo. Diz que três dos seus vizinhos foram mortos porque tinham inimigos que contaram mentiras sobre eles ao Daesh.

Uma mulher que vive em Mossul, no Iraque, e que pediu para não ser identificada, diz que recentemente o EI cortou as mãos a quatro rapazes, de 14 ou 15 anos apenas, porque foram acusados de roubar fios de electricidade para conseguirem luz nas suas casas. Em entrevista por Skype, disse ainda que soube de um homem a quem cortaram as orelhas por ter feito queixas do EI. “Tenho medo deles. Olho para eles, com as suas armas e as suas facas, e penso: ‘São uns monstros. Como é que chegaram até aqui?’ Roubaram-nos a nossa cidade”, conclui.

Noutra entrevista por Skype, uma outra mulher de Mossul diz que receia pelo futuro dos filhos, que estão a ser criados e educados a assistir a tamanha violência. “Na semana passada, o meu filho de seis anos roubou um rebuçado ao irmão. E depois disse: ‘E agora, vais cortar-me a mão?’ Preferia já ter morrido a ter de ouvir do meu filho uma coisa como esta”, conta. Recorda ainda como há pouco tempo, quando seguia de carro com a família, se deparou com uma execução. Era tanta gente a assistir que a estrada estava bloqueada. “Comecei a chorar e tapei os olhos dos meus filhos para que não vissem. Não sei como será o futuro deles. Mas não temos condições para fugir.”

Hadidi, que vive numa localidade perto de Aleppo, diz que frequentemente há estrangeiros que militam no EI a chegar à sua loja de telemóveis para o revistarem e verem as suas contas. Depois, vão a casa dos seus clientes para lhes inspeccionar os telefones. Diz que chicotearam um adolescente só porque ele tinha descarregado música para o telemóvel e que executaram dois outros porque descobriram que tinham a bandeira da Síria nos telefones e por isso eram apoiantes do Governo. “Pensam que toda a gente é espia”, conclui.

Com Souad Mekhennet, em Marrocos e Berlim, Loveday Morris, Erin Cnningham e Mustafa Salim, no Iraque, Karla Adam, em Londres, e Taylor Luck, na Jordânia. Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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