Do lixo em Beirute nasceu uma revolta contra décadas de sectarismo

A revolta do lixo em Beirute pode transformar-se na Primavera Árabe do Líbano. Mas sem Presidente, Parlamento e um primeiro-ministro que se ameaça demitir, tudo é incerto.

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As barreiras de betão duraram menos de um dia em Beirute. Tornaram-se telas para o descontentamento AFP

Passa-se algo de fundamentalmente novo no Líbano para além das montanhas de lixo que se acumulam nas ruas de Beirute, bloqueiam vias de trânsito, chegam à soleira das portas de alguns bairros e torram lentamente às temperaturas intensas do Verão. Por detrás dos milhares de pessoas que protestaram no fim-de-semana contra o Governo, dividido, não eleito e incapaz de decidir sobre sequer uma nova empresa que recolha o lixo na capital, há pela primeira vez um movimento forte que exige o fim da ordem política sectária instalada no país desde 1943.

Tem por diante um país que quase nunca se governou a si próprio e que vive há meses em vazio de poder. Tudo pode agravar-se nesta quinta-feira. O primeiro-ministro ameaça demitir-se se o Governo não encontrar uma solução para o lixo da capital até lá. Cenário preocupante para um país que não tem Presidente e, na prática, não tem Parlamento.

Desde o fim-de-semana que centenas de pessoas gritam todos os dias “Vocês Fedem” diante os edifícios governamentais da capital. Houve perto de 20 mil manifestantes no sábado e domingo. É simultaneamente uma exclamação de protesto e o nome do movimento social que nasceu da crise do lixo e que é agora em muito semelhante às mobilizações de 2011 no mundo árabe. Tal como elas, também tem sido reprimido. Cerca de 400 pessoas ficaram feridas no domingo e pelo menos três morreram. Dezenas foram detidas e algumas delas torturadas. Mas os protestos ressoaram para além das ruas empestadas de Beirute.

“Exigiram nada menos do que a transformação total do Governo. Os manifestantes que usavam t-shirts com ‘revolução’ ou ‘revolta’ escrito cantavam frequentemente‘as pessoas querem o fim do regime’, um apelo comum nas revoltas da Tunísia, Egipto, Síria e Iémen”, descreve o analista jordano-palestiniano Rami G. Khouri, uma das vozes mais influentes sobre o Líbano. “Este desafio público dos líderes sectários que dominam [o país] há gerações é, na verdade, bastante histórico.”


Khouri não é o único a dizer que os protestos do fim-de-semana são “inéditos” no Líbano. Repetem-se os observadores que vêm uma Primavera Árabe florescer por entre os sacos de lixo em Beirute. Tendem a recordar, porém, que décadas de interferência externa no país e cultura política sectária só muito dificilmente serão desenraizados. As montanhas de lixo em Beirute, aliás, contam muito sobre o estado actual do sistema político libanês.

Há quinze meses que não há Presidente no Líbano. O mandato de Michel Suleiman terminou em Maio de 2014 e desde então que o Parlamento tem sido repetidamente incapaz de lhe nomear um sucessor. Mesmo depois de 27 reuniões, às quais muitos deputados faltaram deliberadamente para garantirem que não havia quórum. O Parlamento é uma instituição imobilizada pelo sectarismo e por interesses corporativos. De tal maneira que o último Orçamento foi aprovado em 2005, sem que tenha havido mais vez alguma consenso sobre as contas do Estado. O Governo nem sequer enviou propostas nos últimos dois anos. Limitou-se a duplicar o valor do orçamento de há dez anos.

Também não há um Governo eleito. O executivo liderado por Tammam Salam é uma equipa interina que, na ausência de um Parlamento funcional, tem de aprovar novas leis e tomar decisões práticas. Algo que o facciosismo o impede de fazer. É composto pelo braço político do Hezbollah, o satélite xiita do Irão no Líbano, pelos sunitas do Movimento Futuro e pelos cristãos maronitas do Movimento Patriótico Livre. De forma grosseira, dividem-se em dois blocos: xiitas e cristãos contra sunitas. É a base da discórdia que prevalece desde 17 de Julho, dia em que foi encerrado o já sobrelotado aterro de Naimeh, o único que recebia o lixo de Beirute. Quando Salam ameaçou demitir-se, num discurso televisivo, parecia estar tão desesperado como a população.

Os protestos do fim-de-semana assustaram o Governo e logo na segunda-feira foram instaladas barreiras de betão que impediam o acesso dos manifestantes aos edifícios do poder. No mesmo dia, o ministro libanês do Ambiente anunciava um “final feliz” para a crise do lixo, ao dizer que havia sido encontrada uma empresa “transparente” que acolheria o lixo e que seria consensual para os membros do Governo.

Estava enganado e terça-feira foi um dia de desilusões para o poder. O Governo reparou que as barreiras instaladas na véspera acabaram por servir de tela para pintores e artistas urbanos que nelas deixaram o seu descontentamento. Mandou-as retirar apenas um dia depois de lá as ter colocado. Ao final do dia, Hezbollah e cristãos abandonaram a suposta reunião final do Governo sobre a crise do lixo. Nas ruas de Beirute estavam novamente centenas de pessoas, mesmo tendo o “Vocês Fedem” adiado para sábado um novo protesto geral. O movimento diz que se quer concentrar nos activistas detidos e feridos, e afastar-se também dos grupos violentos que se inseriram nos protestos do fim-de-semana e agravaram a resposta da polícia.


Protesto contra o vazio

Que transformações podem acontecer num país sem primeiro-ministro, Parlamento e Presidente? Não há respostas fáceis. “Não posso honestamente dizer se a possível demissão do primeiro-ministro é uma coisa boa ou má”, explica ao PÚBLICO Joey Ayoub, activista em Beirute. Se o país entrar no vazio, assegura Ayoub, a culpa será do sistema sectário. “Não pedimos um vazio político. Os que propagam essa ideia estão interessados no caos. Falo dos partidos sectários no poder que subsistem do caos e do desespero.”

Importa começar pelo passado do Líbano. E o passado imediato é o de um sistema que dura desde 1943 e que divide informalmente os postos do Governo de acordo com as comunidades principais: aos cristãos maronitas correspondem os cargos de Presidente e comando do exército, aos sunitas a liderança de Governo e aos xiitas a presidência do Parlamento.

Este molde perdurou para além da guerra civil libanesa, ainda bastante presente na consciência colectiva do país. Morreram mais de cem mil pessoas entre 1975 e o início da década de 1990, foi ironicamente o início da grande influência iraniana no país como resposta à invasão israelita e a ela seguiram-se ainda quinze anos de ocupação síria. Uma organização que até pode estar já caducada – hoje os xiitas são a maioria no Líbano, e os cristãos menos numerosos – mas que, agarrada ao clientelismo que criou, foi capaz de sobreviver também à Revolução do Cedro, em 2005. E esta conseguiu unir quase um terço da população do Líbano em protestos intersectários contra a ocupação das tropas sírias de Bashar al-Assad no país.

Os protestos do Cedro conseguiram expulsar Assad em 2005, mas não fizeram nada para transformar as instituições libanesas. A interferência exterior manteve-se e, desde então, muito mudou. A guerra na Síria acentuou as divisões sectárias no Líbano e o Norte do país está transformado uma região de difícil convivência entre cristãos e sunitas, ambos a paredes-meias com grupos jihadistas como o autoproclamado Estado Islâmico e a Frente al-Nusra, satélite da Al-Qaeda na Síria. Contra quem pouco pode o exército libanês, reduzido nos últimos anos a operações de segurança pública e dependente por inteiro dos combatentes do Hezbollah.

Daí que Zvi Bar’el, analista no diário israelita Haaretz, se questione quanto ao caminho a seguir para a embrionária Primavera Árabe do Líbano: “Resumindo, não há ninguém contra quem se revoltarem e nenhum Governo que possam derrubar.” Outros, como Rami G. Khouri, dizem que os próximos meses decidirão o rumo da revolta. “A mudança, aconteça lentamente, rapidamente ou de todo será decidido nos próximos meses, quando o movimento ‘Vocês Fedem’ revelar se consegue lidar com agitação dolorosa da mudança política nacional numa terra que se recusa a mudar há quatro gerações”.

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