Quando a realidade e a ficção trocaram de lugar

Que pais é o de As Mil e uma Noites? Encontra-se nos jornais, está na TV? Maria José Oliveira dirigiu a equipa de jornalistas que durante um ano percorreram histórias de Portugal.

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O cão, Dixie, corporiza a enorme vontade de amar e a uma ainda maior necessidade de esquecer que deflagra em câmara lenta no segundo volume de As Mil e uma Noites DR
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Os diferentes retratos de Portugal também aparecem nos jornais e nas televisões, mas faltam tempo, espaço e muitas vezes competência para os tratar devidamente DR

Maria José Oliveira saiu a chorar da projecção do segundo volume de As Mil e uma Noites. Isto em Cannes, onde se deu o primeiro confronto da jornalista com as ficções nascidas das histórias que investigou durante um ano. “Saí a chorar, nem consegui falar. Foi estranho estar a ver a forma como [a ficção] se aproximava tanto da realidade, era quase literal, as personagens, o cão, os cafés... Era exactamente o que eu tinha visto.”

Isto de que se fala é, em As Mil e uma Noites — O Desolado, a história de Luísa (Teresa Madruga) e Humberto (João Pedro Bénard) e do seu pacto suicida numa torre de Santo António dos Cavaleiros, subúrbio de Lisboa, que Maria José investigou durante um mês; é ainda a história de Vânia (Joana de Verona) e de Vasco (Gonçalo Waddington), casal de toxicodependentes que “herda” de Luísa e Humberto o cão Dixie, que afinal é o corpo de uma enorme vontade de amar e de uma ainda maior necessidade de esquecer consumida na explosão de narrativas e personagens que deflagra em câmara lenta ao som de Lionel Richie naquela torre — tanta tristeza enclausurada, é o ponto de rebuçado cinematográfico da trilogia.

Voltando a Cannes e às lágrimas da jornalista, porque a realidade e a ficção trocaram de lugar... “Eu estava chateada com ele” — ele, o realizador, Miguel Gomes. “É que nunca pensei que fosse tão longe. ‘A mim só me apetecia insultar-te’” — disse-lhe. “Não estava à espera que chegasse tão próximo do que realmente aconteceu, até os actores estavam próximos daquilo que imagino que eles [o casal] eram” — a música dos anos 80 conferia. “Ele é demasiado rápido, o Miguel, a apanhar, a ler as pessoas, a interpretar o que as pessoas estão a pensar.”

Se foi demasiado para a jornalista, antes tinha sido demasiado para o realizador: “Fui à rodagem de Santo António dos Cavaleiros num dia, apenas para falar com alguém que tinha sido próximo do casal. Estive pouco tempo no prédio, mas às tantas comecei a contar ao Miguel as conversas, coisas que me tinham dito, e o Miguel... ‘Pára, isso é demasiado para mim’. É que às vezes é preciso ficcionarmos para as coisas serem credíveis.”

Em tempo real
Maria José Oliveira, Rita Ferreira e João de Almeida Dias foram os jornalistas que durante um ano alimentaram, com as histórias que liam em jornais e blogues ou viam na televisão, a vontade de ficção do Comité Central, Mariana Ricardo, Telmo Churro e Miguel Gomes, argumentistas que aguardavam do outro lado da parede e da porta. Havia o “corta-e-cola” em dossiers, o ritual de entrega, à sexta-feira, “de uma lista de acontecimentos e temas” a propor. À segunda-feira esperava-os, aos jornalistas, a mesma lista, agora com as prioridades de investigação hierarquizadas de acordo com o apetite do Comité Central. “Apesar de inicialmente sentirmos que estávamos a trabalhar no escuro, sem saber bem o que pretendiam os argumentistas e o realizador, ao longo dos meses de trabalho percebemos que a nossa função era dar-lhes matéria-prima para eles a trabalharem como quisessem.” E começaram a perceber, aliás, “a apetência” dos argumentistas por histórias com animais — o cão, os pássaros, o galo... “Na sala onde os argumentistas trabalhavam existia um quadro enorme onde eles iam escrevendo, em cores diferentes, os temas que queriam ver investigados, os episódios a filmar, aqueles que já estavam filmados, as histórias que seriam encadeadas, etc.”

Mas o método não era rígido. Até porque “poucas coisas foram previsíveis no projecto”: “Trabalhávamos em tempo real, as coisas estavam a acontecer (ou tinham acontecido há pouco tempo) e os jornalistas iam para o terreno, algumas vezes com a equipa de filmagem.” O tráfego entre a realidade, que abastecia uma sala, e a ficção, que nascia ao lado, podia fazer-se também através de conversas, com o Comité Central a tomar notas. Uma breve num jornal a contar que uma juíza chorara a ler uma sentença, fez nascer a personagem de Luísa Cruz — tudo depois confirmado ao telefone — e o espectáculo de catarse popular, com caretos e tudo, de um Acto português sobre a cadeia de culpa, miséria e corrupção (segundo volume). Uma série de conversas em off com fontes, ouvidas por Maria José e Rita Ferreira, encheram os detalhes do episódio da troika, Os Homens de Pau Feito (primeiro volume). Mas outra das pièces de résistance, a aventura dos passarinheiros (terceiro), não começou em jornal algum.

“O filho do Telmo Churro, que adora pássaros, falou ao pai nos tentilhões e nos concursos em Lisboa. O Comité Central pediu-nos para investigar. Começámos por ver vídeos de concursos no YouTube — em que se viam apenas homens, em silêncio, a beber cerveja e a ouvir os pássaros —, encontrámos blogues só sobre tentilhões, e o João de Almeida Dias começou a visitar os locais de encontro dos passarinheiros, como os Onze Unidos, no Beato. Ficámos espantados com aquela comunidade, aqui em Lisboa, sobre a qual nada sabíamos. O João escreveu duas grandes reportagens. E o interesse do Comité Central ia crescendo. Fizeram-se dezenas de entrevistas e a história dos tentilhões e dos passarinheiros passou a fazer parte da família, porque as filmagens foram feitas ao longo de muitos meses, no ‘intervalo’ de outras filmagens, e porque o João manteve sempre um contacto próximo com aquela comunidade, a pedido do Comité Central.”

Inserido no volume três, O Encantado, o mais doloroso da trilogia, aquele que, de forma mais profunda, menos circunstancial, menos datada até (porque, suprema ironia, a guerrilha anti-troika no primeiro filme pode surgir gasta, vista, esperada...), escava fundo na desilusão: os polícias protestam no Parlamento, os pássaros cantam; Grândola Vila Morena levanta-se com cravos e contra o Governo, e os pássaros cantam; os pássaros cantam, e ergue-se uma geografia social e afectiva de Lisboa, Norte e Oriental, que é retrato do país e da desilusão nacional.

“Para mim, é a história mais surpreendente, é a minha preferida. Uma comunidade que existe há dezenas de anos em Lisboa, com uma paixão improvável, que lhes consome grande parte do tempo livre e que não tem qualquer objectivo prático nem recompensa óbvia, a não ser o puro prazer estético. São como melómanos — ou cinéfilos.”

Como se vê, cada filme — como quer que lidemos com o exibicionismo no primeiro capítulo, O Inquieto, a mostrar-se sobretudo como proeza, ou com as dificuldades, no último, O Encantado, de traduzir cinematograficamente o encanto com a multiplicação de histórias (usa excessivamente a bengala do texto) — termina com uma peça de fôlego que nos reconcilia: os passarinheiros, a Torre de Santo António dos Cavaleiros, os desempregados de Aveiro, momento em que o volume um, enfim, se despe da sua consciência de que é tour-de-force e da necessidade de se mostrar como superação, disponibilizando-se — e superando-se, por isso — para uma série de monólogos catárticos. É um momento de depuração, de justeza.  

“Aqueles quatro ‘magníficos’” — o episódio dos desempregados de Aveiro — “foram descobertos depois de termos feito dezenas de entrevistas a desempregados da região. Pedimos ajuda a instituições de solidariedade, a sindicatos, e chegámos a ir para a fila de um centro de emprego procurar alguém que estivesse disponível para falar connosco. Fizemos entrevistas longas, por vezes seis ou sete por dia, foi extenuante. Tal como aconteceu em muitas situações ao longo do ano, deparámo-nos com uma total disponibilidade das pessoas para contarem as suas vidas, foi um acto de generosidade da parte delas. Aquilo que surge em O Banho dos Magníficos, no momento dos monólogos, não é muito diferente do que aconteceu durante o período das entrevistas; é apenas mais curto e daí esse efeito de depuração.”

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Que Portugal é o de As Mil e uma Noites? Encontra-se nos jornais, está na TV? “O tempo que tivemos para investigar cada uma das histórias, viajando por todo o lado, foi fundamental para nos dar uma ideia mais nítida do país. Os diferentes retratos de Portugal também aparecem nos jornais e nas televisões, mas faltam tempo, espaço e muitas vezes competência para os tratar devidamente. Em termos culturais e políticos, pouco ou nada mudou desde o século XIX, com zonas em que senti quase opressivamente um isolamento que se manifesta de diferentes formas, desde actos de violência a diversos tipos de carências. Apesar disto, encontrei quase sempre uma grande generosidade nas pessoas, disponíveis para conversar e contar as suas histórias. Mesmo quando a primeira abordagem era complicada. Porque me apresentava como jornalista, mas não estava a trabalhar para um órgão de comunicação social; porque escrevia para um site ligado a um filme, mas o filme ainda não tinha histórias; porque eu não sabia o que responder quando me perguntavam: ‘Mas vão fazer um filme sobre nós?’.”

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