Murade Murargy: “Temos de ter paciência com a Guiné Equatorial”

Secretário executivo da CPLP relativiza a dissolução do poder judicial na Guiné Equatorial e apela ao bom senso na Guiné-Bissau para sair da crise.

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Murade Murargy Rui Gaudêncio

O secretário executivo da CPLP relativiza a dissolução do poder judicial no país presidido por Teodoro Obiang. Refuta as acusações de envolvimento na operação Lava Jato e defende que Lula da Silva é "do ponto de vista humano, e na perspectiva de africano, um grande amigo de África".

Não esconde as divergências com a diplomacia portuguesa sobre o regime de Malabo. Estabelece mesmo uma diferença entre o ministro Rui Machete e o seu secretário de Estado da Cooperação, Luís Campos Ferreira, face à Guiné Equatorial. O moçambicano Murade Murargy regozija-se por não ter consentido a dependência da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), da qual é secretário executivo, em relação a nenhum Estado-membro, ou seja, Portugal.

PÚBLICO: A Guiné Equatorial entrou há pouco mais de um ano como membro de pleno direito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Qual é o balanço que faz como secretário executivo da CPLP?
Murade Murargy: É positivo, esse aspecto foi analisado na última reunião do conselho de ministros da CPLP de Díli [23 e 24 de Julho]. Face aos últimos relatórios apresentados, o conselho de ministros considerou positiva a entrada da Guiné Equatorial na nossa comunidade. Não poderíamos esperar outra coisa, porque um processo de integração é bastante complexo. A Guiné Equatorial é um país que não tinha a língua portuguesa como oficial, há uma série de valores que não eram partilhados, para o país, era um processo de iniciação. Tinha de se organizar para ter instituições que pudessem fazer o acompanhamento da integração, razão pela qual as autoridades da Guiné Equatorial propuseram uma série de protocolos de cooperação com a CPLP, o secretariado e os Estados membros, tendo em vista acelerar a sua integração plena. O balanço feito em Díli, através das informações do embaixador e também da constatação no terreno - estive na Guiné Equatorial em Junho - foi positivo. Informei o conselho de ministros que a Guiné Equatorial está empenhada. Quando vou lá, não me encontro apenas com o Presidente [Teodoro Obiang], uma das pessoas que estão mais empenhadas na integração e no cumprimento do seu compromisso político para com a comunidade.

Sendo assim, que pensa do decreto presidencial de Obiang, de 20 de Maio, que dissolveu o poder judicial?
São questões internas que eu não …

Internas? Nos estatutos da CPLP está prevista a cooperação dos Estados na Justiça, referem-se Estados democráticos com separação de poderes, não com dissolução do poder judicial. Isto não é normal.
Pois, não me envolvi nesses aspectos porque não tive conhecimento.

Quando teve conhecimento?
Através dos órgãos de comunicação, não tive uma notificação pelos órgãos competentes.

Os seus diplomatas no terreno não o informaram?
Não me informaram.

Não tinham que o fazer?
Não. Não foi uma questão de grande dimensão, como estamos a pensar.

Considera esta uma questão menor?
É uma questão interna da governação da Guiné Equatorial. Nós estamos a apoiar a Guiné Equatorial na sua integração [na CPLP]. Esse é que o ponto fundamental. Não vou considerar a situação, nem sei do que se trata, não sei que tipo de solução foi feita, não sei.

O ministro Rui Machete considerou esta situação negativa. Qual é a sua posição?
É a apreciação do ministro português.

Não faz a sua?
Não, porque não tenho conhecimento. Não me pronuncio sobre coisas de que não tenho conhecimento.

Não sabia que Malabo dissolveu o poder judicial?
Só através dos órgãos de comunicação.
 
O chefe da diplomacia portuguesa considerou insuficiente o acompanhamento pela CPLP do cumprimento do dossier dos Direitos Humanos na Guiné Equatorial. Diz-me que Malabo está a evoluir favoravelmente e que não podia ser de outra maneira. Em que ficamos?
Não sei qual é base do ministro Machete. Ele não esteve em Díli, não ouviu a informação completa, contrariamente ao seu secretário de Estado [Luís Campos Ferreira, secretário de Estado da Cooperação] que ouviu o relatório do embaixador e manifestou a sua opinião. Não houve uma opinião negativa do representante de Portugal no conselho de ministros de Díli. Disse que o processo estava evoluindo, que tínhamos de apoiar a Guiné Equatorial, mas não de uma forma negativa, não sei se foi isso que o ministro Machete disse ou não…

Está a duvidar?
Não estou a duvidar.

Suscita-lhe algum comentário o facto de, nestes 12 meses nos quais a Guiné Equatorial é membro de pleno direito da CPLP, não ter havido a legalização de novos partidos ou o regresso de exilados, e de continuar a prática de confinamento dos opositores?
Para mim, essas são as perguntas de quem não quer ir ver a situação no terreno. Eu convido as pessoas a deslocarem-se e depois de verem o que se passa no terreno é que deviam falar e fazer os seus comentários. Não é só a Guiné Equatorial, muitos outros países têm as mesmas situações. Porque não nos preocupamos com eles? Mesmo na nossa comunidade. Não vou citar países, mas sabe e eu também. Tenho estado permanentemente lá [Guiné Equatorial], estive com uma delegação empresarial portuguesa e, ao contrário do que escreveram no PÚBLICO de que havia empresários com uma visão negativa, eles voltaram com uma opinião totalmente diferente ao que se diz.

Tem estado regularmente em Malabo e nunca indagou as autoridades e o presidente Obiang com quem fala pessoalmente das questões dos Direitos Humanos?
Não baseio as minhas informações no que a imprensa fala. Se pegasse em tudo o que a imprensa fala, passaria o tempo só a fazer indagações.
 
Então, que exemplos concretos pode dar da melhoria da situação?
Temos lá embaixadores de vários países. A embaixada do Brasil deu informações de que não havia presos políticos, como se diz cá fora. Mas, para mim, a questão de fundo é que temos de ajudar a Guiné Equatorial a melhorar a sua governação. Agora, pegar em coisas que fazem parte do seu passado, para mim não é importante.

E as coisas do presente?
As coisas estão a melhorar, estão. Mas qual é o problema que vocês têm com a Guiné Equatorial? Pelos vistos há um problema. A Guiné Equatorial entrou na CPLP com um compromisso, estamos a seguir a evolução da situação interna, está evoluindo. Tem cooperação com Portugal, com o Brasil, com todos os países da língua portuguesa.

O que ganhou a CPLP com a entrada da Guiné Equatorial? Houve mais investimentos de países da CPLP?
O primeiro país é Portugal que está a fazer comércio com a Guiné Equatorial.

Quais são os países que, neste momento, mais lá investem?
O Brasil e Portugal, e a Guiné Equatorial tem missões empresariais em Moçambique, está a investir em Moçambique. A Guiné Equatorial quer investir em Portugal mas pelas questões que existem e que têm de ser ultrapassadas…

Que questões?
As questões dos direitos humanos de que tanto fala a imprensa. Eles [Guiné Equatorial] queriam entrar como accionistas no Banif mas fez-se tanta guerra contra isso que se retraíram. Disseram que não vale a pena, vamos ver até ao momento oportuno. Neste momento, a Visabeira está em negociações para entrar na Guiné Equatorial, com as telecomunicações, com a hotelaria. Há outras empresas portuguesas, na agricultura, que estão a entrar.

Tem conhecimento de queixas de empresários espanhóis, italianos ou franceses de que os seus investimentos dependem de associações com familiares do Presidente Obiang?
Não tenho conhecimento disso.

Sabe se a empresários do universo da CPLP são sugeridas associações com pessoas próximas do Presidente Obiang?
Não tenho conhecimento.

Como está o ensino do português na Guiné Equatorial?
Está a correr bem. O Brasil está muito envolvido, Portugal também. Os outros países [da CPLP] têm tantos problemas internos para resolver…

Em que língua é que fala com o Presidente Obiang?
Falamos em português. 

E demora muito tempo?
Ele mantém uma conversa, estive com ele uma meia hora a falarmos em português. Aliás, num círculo, eu, o Presidente Trovoada e o Obiang, os três juntos, a conversar. Tínhamos começado em francês porque estavam lá os presidentes do Congo, da Guiné-Conacri e do Togo, mas quando eles se retiraram, e não nos demos conta, ficámos os três da língua portuguesa a falar em francês. Então, o Presidente de São Tomé deu-se conta e voltámos a falar em português.

O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, disse que o seu país quer aproveitar a presidência rotativa do conselho de ministros da CPLP em 2016 para voltar aos princípios fundadores, em especial a língua. O que pensa?
Não concordo. A CPLP não pode ficar parada no tempo, isso significa ficar parado no tempo, isso é nostalgia.

A língua é nostalgia ou um veículo comum?
A língua é um veículo comum, mas temos de evoluir. Que a CPLP fique, apenas, a dormir sobre a língua é, para mim, nostalgia. Língua, língua, língua... E depois da língua o que há? A CPLP tem de ser um pouco mais que isso. A CPLP tem de se aproximar dos seus povos, de desenvolver projectos de cooperação que visem melhorar as condições de vida dos nossos povos. Temos o dever e a obrigação de difundir a língua, mas não devemos ficar parados aí. Hoje, o português é uma língua de negócios. Porque é que os japoneses e os chineses aprendem português? Para fazer negócios connosco. Nos contratos com os chineses, por exemplo, há uma versão em chinês, outra em português e uma terceira em inglês, que serve, mais ou menos, de árbitro. Quando não encontramos uma terminologia comum. O português é uma língua da ciência, da tecnologia, da inovação, não só a língua do Camões. Temos de explorar todas estas vias que a língua portuguesa nos oferece e não ficar parados no idioma, idioma, idioma. Só isso não dá.

Mauro Vieira diz, também, que não se deve transformar a CPLP numa organização comercial e económica e que deve ser um espaço de consensos políticos e cooperação. O que pensa?
Concordo, mas não devemos ficar parados aí. Consensos políticos e cooperação muito bem, mas temos de ver a componente empresarial, a sociedade civil tem de ser desenvolvida, tal como a participação dos povos. Temos de nos aproximar através de várias acções.

Então, esta visão do ministro brasileiro é limitada?
É limitada, é limitada. Se é isso que ele pensa, é limitada. Não digo que seja positiva ou negativa, mas que devia ir mais além.

A CPLP deve ancorar-se nas relações económicas em detrimento do apoio e consolidação das estruturas democráticas dos Estados membros?
A CPLP tem os seus princípios e valores que são sagrados. Estado democrático, princípios humanos e liberdade de expressão, disso não abdico. Mas quem está na berlinda é a Guiné Equatorial e temos de fazer com que a Guiné Equatorial enverede pelos nossos princípios.

Com pouco êxito…
A Guiné Equatorial só tem um ano na CPLP.

E ao fim de um ano dissolve o poder judicial…
É um processo que vai levar tempo, o seu tempo. Temos de ter paciência.

Paciência ou cumplicidade?
Paciência, não é cumplicidade, temos de ter paciência. Apoiar, foi por isso que o conselho de ministros decidiu nomear Ramos Horta para fazer o acompanhamento, aconselhar quais os caminhos a seguir.

Como é possível construir algo de novo, objectivo fundador da CPLP, mantendo práticas de antanho como o desrespeito dos direitos humanos?
Mas não há desrespeito dos direitos humanos.

O que é a dissolução do poder judicial? Que garantias dá um Estado quando não tem tribunais independentes?
Nunca fui interpelado sobre esta questão por um Estado membro da CPLP. Foi uma situação que pode acontecer em qualquer dos Estados membros.

Espero que não.
Espero que não, também.

Tenho a certeza que isso em Moçambique não vai acontecer.
Também acho, mas a Guiné Equatorial é um país ainda frágil, frágil, tem instituições frágeis e temos de compreender, entender e apoiar. É um país que se está a organizar, a caminhar com muita dificuldade, temos de lhe dar a mão e não abandoná-lo. Não sou pela política do abandono, pela crítica pela crítica, mas pela crítica construtiva, fazer isto e aquilo. Isso temos dito. Agora, não vou entrar com violência e dizer ao Presidente [Obiang] porque dissolveu o poder judicial…

É uma pergunta a fazer?
Há maneiras de dizer as coisas para nós, diplomatas.

E já disse?
Já disse. Não tenho que dar dados concretos.

Em Angola, o Governo fala de actos preparatórios da tentativa de deposição do Presidente José Eduardo dos Santos. Como vê a situação?
Só assumo posições em função das decisões dos Estados membros da CPLP. Não assumo posições individuais.

Esse é o mesmo critério em relação às preocupações sobre a Guiné-Bissau?
Temos lá um representante que nos informa e estamos em concertação com outras quatro organizações internacionais – Nações Unidas, União Africana, Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental e União Europeia. O que comuniquei quando o nosso representante disse que a situação estava difícil, que os poderes, o primeiro-ministro, o Presidente e o parlamento não se estão a entender, é que não podemos desiludir a comunidade internacional que considera a Guiné Bissau no bom caminho. Que a instabilidade vai criar problemas de credibilidade internacional quando o dossiê Guiné-Bissau estava no bom caminho. A comunidade internacional pode deixar a Guiné-Bissau de lado e preocupar-se com outras questões.

Esta sua posição não é mais interveniente do que em Angola ou na Guiné Equatorial?
São situações concretas, estou a falar porque na Guiné Bissau os parceiros internacionais falam a mesma voz, não é uma posição, apenas, de uma organização, mas de cinco, incluindo a CPLP.

A revista brasileira Veja referiu o seu envolvimento na operação Lava Jato, quando era embaixador de Moçambique no Brasil. Refuta as acusações?
Perfeitamente. Refuto redondamente. Estive no Brasil como embaixador de Moçambique e, como embaixador, tive contactos com todas as autoridades, com os presidentes Lula, Fernando Cardoso, Itamar Franco, com todos os poderes e partidos políticos. O meu papel como embaixador de Moçambique era seguir o nosso lema – fazer mais amigos e atrair investimentos. Foi o que fiz. Contactei todas as empresas. Mas não estou a ser investigado, estou a ser citado porque falei com Lula, o que é natural.

Com a sua experiência brasileira como vê as acusações a Lula da Silva?
Não me quero envolver na situação interna de um país.

Mas surpreenderam-nos as acusações, do ponto de vista humano?
Do ponto de vista humano, e na perspectiva de africano, o Lula é um grande amigo de África. Desenvolveu uma grande relação política, económica e comercial com África e o Brasil, as empresas brasileiras beneficiaram imenso com os projectos em África. O Brasil é hoje visível em África graças a Lula. Os projectos de bolsa-família que ele introduziu nos nossos países – em Moçambique temos o bolsa-escola, o ensino à distância com o apoio do Brasil, outros projectos sociais, a fábrica de anti- retrovirais – e em outros países africanos foram importantes. Como africano é assim que vejo o Lula, internamente são os brasileiros que têm de julgar, não eu.
 
Tem uma longa trajectória política, já está reformado. Como encara os casos que suscitam dúvidas sobre o comportamento ético dos políticos?
Falo como político e diplomata. Muitas vezes somos pessoas incompreendidas. As nossas acções são incompreendidas e, muitas vezes, confundidas com acções marginais. Se promovo uma empresa do meu país para que se internacionalize faço um crime?
 
Se receber luvas por isso, faz.
Mas quem garante que recebo luvas? Eu promovo a empresa, não recebo luvas nenhumas. Se tivesse recebido luvas era um homem rico, não sou. Falo como político. Agora, aqueles que se beneficiaram de uma forma indevida desses processos, lá está a Justiça para isso, não me oponho. A Justiça está para julgar, vai demorar o seu tempo, mas está lá. São os órgãos competentes de cada país que vão julgar se há crime ou não há crime. Para isso estão os tribunais.
 
Em 2016 termina o seu cargo como secretário executivo da CPLP. Qual gostaria que fosse o perfil do seu sucessor?
Quando vou para um posto não vou com a intenção de destruir o que outro fez, ou de pôr em causa o que outro fez. Faço as correcções que tiver de fazer, mas continuo a obra. No caso da CPLP, gostaria que quem viesse tivesse a visão de uma CPLP de que todos nos orgulhemos, de uma CPLP de cidadãos de todos os países. Não uma CPLP alienada a um ou outro país, uma CPLP que consiga manter a sua independência, como eu tentei fazer. Apesar de estar em Portugal, nunca aceitei que a CPLP estivesse dependente de qualquer dos Estados membros. Procurei dar uma personalidade à CPLP.

Apesar de estar em Portugal, nunca permitiu que a CPLP ficasse dependente de Portugal?
Nunca, nunca.
 
Existiu essa tentativa?
Não sei, mas mantive uma linha de independência total. Qualquer relação minha e desta casa com Portugal é através das pessoas próprias, a representação permanente de Portugal perante a CPLP e o embaixador de Portugal que apresentou credenciais. Esse é que é o meu interlocutor, não um director ou quem quer que seja para interferir no meu trabalho.
 
Nenhum ministro de governo português…
Não, não, há os mecanismos próprios.

Sente-se incomodado quando ministros portugueses manifestam opiniões sobre a CPLP?
Não tem problema. São contribuições que podem ser ou não ser construtivas. Mesmo essa declaração do ministro Machete [considerar negativa a dissolução do poder judicial na Guiné Equatorial], tirando esse aspecto, achei positiva.
 
À excepção da Guiné Equatorial?
Talvez não tenha sido bem informado. De toda a maneira, fez declarações importantes para o avanço da CPLP, admite que a CPLP tem de ser muito mais que a língua.

Escreve segundo o acordo ortográfico?
Sou indisciplinado. Misturo.

Que horror.
Não, escrevo pelo antigo.

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