Viver em Calais e morrer a tentar chegar ao Reino Unido

Morreu o segundo migrante atropelado por um comboio em duas semanas. O porto francês de Calais é um dos centros de migração mais frequentados na Europa, de onde milhares tentam atravessar para o Reino Unido todos os anos.

Na Nova Selva, as condições são piores do que em muitos campos de refugiados em zonas de guerra
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Na Nova Selva, as condições são piores do que em muitos campos de refugiados em zonas de guerra Pascal Rossignol / Reuters
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Polícias em Calais expulsam migrantes que conseguiram entrar clandestinamente num camião de carga Vincent Kessler / Reuters
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Dois migrantes do Sudão num acampamento improvisado, à chuva, nas proximidades de uma auto-estrada que atravessa o canal inglês Pascal Rossignol / Reuters
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Migrantes procuram por camiões em que possam entrar para fazer a travessia para o Reino Unido Vincent Kessler /Reuters
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Migrantes fotografados em 2014 perto do ferry que faz a travessida de Calais para Dover Philippe Huguen / AFP

Um migrante de origem africana morreu ao início da manhã de terça-feira no túnel do Canal da Mancha, atropelado pelo comboio de carga em que tentava entrar clandestinamente para fazer a travessia de França para o Reino Unido. O homem fazia parte de um grupo de pelo menos 40 pessoas que tentava chegar à costa britânica a partir de Calais. Os que conseguiram entrar no comboio foram mais tarde retirados pelas autoridades britânicas.

Este é o segundo migrante africano a morrer no espaço de duas semanas pelos mesmos motivos. No final de Junho, um homem natural da Eritreia foi encontrado morto na estação ferroviária de Coquelles, em Calais, de onde partem os comboios de carga que chegam ao Reino Unido. Foi também atropelado por um comboio.

Calais é um dos núcleos de migração mais frequentados e perigosos da Europa. Estima-se que haja entre 3000 e 4000 migrantes ali acampados, seja num campo de tendas para refugiados, ou nos arredores das auto-estradas que ligam a cidade francesa a Dover. Todos os dias chega mais de uma centena de migrantes que, mais tarde ou mais cedo, tentam a travessia de cerca de 30 quilómetros para o que acreditam ser uma vida melhor no Reino Unido.

De acordo com o diário britânico Guardian, no ano passado morreram pelo menos 15 migrantes a tentar chegar a Dover. Os que sobrevivem arriscam-se a sofrer ferimentos graves ou a serem agredidos pela polícia. Segundo o Telegraph, 1200 migrantes em Calais foram deportados para fora do país em 2014.

Para muitos, a travessia de Calais para o Reino Unido é o último passo para uma nova vida. Mas um passo perigoso, como explica Riswan ao Guardian, um jovem migrante paquistanês que já viu dezenas de pessoas ficarem feridas nas auto-estradas, ao tentarem entrar nas caixas de carga dos camiões.

“Raparigas com bebés”, explica Riswan.“Um rapaz ficou gravemente ferido no peito quando uma roda [de camião] o atropelou… havia muito sangue.” E depois há a polícia: “A polícia luta muito. Já atravessei fronteiras na Grécia, Holanda, Bélgica, mas eles são só conversa. Aqui lutam.”

Uma vida melhor
Na base da crise de migrantes em Calais está a convicção de que uma vida no Reino Unido será melhor do que em França. Muitos migrantes falam inglês, não outras línguas europeias, e têm também família no Reino Unido, como explica à Reuters Christian Salomé, presidente do grupo humanitário francês Albergue dos Migrantes.

De acordo com um estudo do Ministério do Interior francês, o sistema britânico resolve mais rapidamente pedidos de asilo do que o francês – seis meses contra nove. Em França, os migrantes são enviados para centros de acolhimento, enquanto no Reino Unido recebem residências de urgência “o mais cedo possível”. Para além disto, explica a Reuters, um migrante recebe assistência médica grátis no Reino Unido e, sem documentação, tem ao seu dispor uma “economia paralela em crescimento”.

“Em Inglaterra, quando entregam um pedido de asilo, têm abrigo, existem, são reconhecidos”, diz Salomé. “Em França, entregam um pedido e regressam para o bairro de lata.”

O bairro de lata de Calais chama-se “Selva II”, ou “Nova Selva”. É uma rede de vários quilómetros de tendas e abrigos improvisados onde vive a maior parte dos migrantes. “Cabanas com tectos de plástico negro e tendas que se estendem até onde o olhar alcança”, como escreve o Telegraph. As condições são piores do que em muitos cenários de guerra, diz o diário britânico, citando as agências humanitárias que trabalham no local.

“Temos direito a uma refeição por dia e temos que estar numa fila durante várias horas. Algumas vezes a comida acaba-se antes de lá chegarmos”, disse Bahad ao Guardian, numa reportagem publicada no início de Junho. Era final da tarde e Bahad ainda não tinha comido. “Toda a gente anda sempre com fome”, explicou.  

Teddy, da Eritreia, falou com o Guardian na Nova Selva. Descansava depois de uma noite passada na auto-estrada a tentar embarcar num camião de carga. Segundo ele, conseguiu entrar em três, mas acabou sempre expulso. “Um amigo meu com quem estive na noite passada acabou de me ligar e está no Reino Unido”, disse. “Agarrou-se debaixo de um camião. Foi muito perigoso." Mas, como diz Riswan, é a única alternativa. "Temos de continuar a tentar porque isto não é sítio onde ficar."

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