Obrigado, Grécia

Independentemente do que acontecer no referendo deste domingo, a dívida para com a Grécia já é enorme. Pela linguagem. Pela filosofia. Pela democracia. Pelo passado que continua presente na nossa vida de todos os dias. Mas também pelo que aconteceu nos últimos meses.

Em 2011, em entrevista ao The Guardian, o histórico cineasta francês Jean-Luc Godard propunha, de forma provocatória, uma solução simples e original para a crise grega, baseada nessa dívida da humanidade para com os gregos. “Deram-nos a lógica e a razão, devemos-lhes isso”, dizia.

Aristóteles deu-nos o advérbio “portanto”, que utilizamos milhões de vezes. Logo se pagássemos direitos de autor sobre a palavra, ou se aquela fosse taxada sempre que usada, seria fácil aos gregos abater a sua dívida, alegava Godard. Sempre que Ângela Merkel dissesse aos gregos “emprestamos-vos dinheiro, portanto terão de o pagar com juros”, ela teria em primeiro lugar de pagar-lhes direitos de autor, afirmava ele.

A provocação de Godard transmitia duas ideias. A primeira é que na Europa operou-se uma perigosa inversão de valores que subordina a solidariedade aos egoísmos nacionais e à concorrência desenfreada. A finança converteu-se na única narrativa europeia o que é inaceitável para países que podem deter uma economia mais fragilizada, mas que são capazes de gerar riqueza a tantos outros níveis e da qual todos acabam por beneficiar — seja através da cultura, do conhecimento ou do saber. Por outro lado mostrava que soluções há sempre, desde que exista realmente vontade entre as diferentes partes em encontrá-las.

Nos últimos meses o governo grego quis ir por aí. Em discussão nunca esteve o pagamento da dívida, mas as condições de pagamento. E aí não se entende porque não é possível chegar a um acordo. Pode-se ser simplista e resumir tudo a uma questão de mercearia — alguém gastou mais do que tinha, endividou-se, e como tal deve pagar aos credores e não se fala mais disso. Mas também se pode usar a lógica. Sabe-se que a Grécia tem responsabilidades, mas que foi no quadro da União Europeia, adoptando as suas políticas e directivas, sendo inclusive motivada a fazê-lo, para além dos posteriores e nefastos curativos, que a sua situação concreta se foi agravando. Há por isso responsabilidades partilhadas.

Outro mérito não tivesse a acção dos últimos meses do governo grego expôs a ferida, mostrando que independentemente das menores ou maiores responsabilidades locais, existem questões políticas estruturais que apenas no quadro europeu podem ser solucionadas. Hoje é claro que a zona euro foi mal concebida e que foi sendo construída uma União Europeia baseada apenas na interdependência financeira e não política.

Para adicionar complexidade temos um modelo capitalista que dá mostras de limitações, ou pelo menos vai adquirindo cada vez mais formas perversas e desreguláveis que têm de ser repensadas. Nada que não tivéssemos ouvido ao longo dos últimos anos, desde o irromper da crise financeira, da boca de economistas independentes, pensadores progressistas ou políticos desalinhados, mas ninguém lhes deu ouvidos.

A acção do governo grego, para lá de quaisquer motivações ideológicas, colocou isso a nu. Mostrou-nos a verdadeira face da actual União Europeia. Hoje é claro que existem duas Europas e que os países mais fortalecidos economicamente não só não querem caminhar ao ritmo dos mais lentos, como não se importam de o fazer ao seu revés, o que também não se entende, porque há interdependência. Percebeu-se o desnorte, a ausência de soluções, os insondáveis jogos de bastidores e a insistência na austeridade, como se por si só essa pudesse ser a solução seja do que for. É claro que o governo grego também cometeu erros e não está isento de censura aqui e ali, mas com a desproporção de forças e a intoxicação da opinião pública outra coisa não se poderia imaginar.

Aconteça o que acontecer hoje, e nos próximos dias, aquilo que a questão grega mostrou é que esta Europa tem que mudar. É verdade que não existe transformação sem alguma dose de risco, mas o maior perigo neste momento é não haver mudança. O que a acção do governo grego expôs é que, mais do que as dívidas, é a qualidade da democracia e o caminho que a Europa deseja seguir no futuro próximo que está em causa. O que vier a acontecer agora é decisivo. Seria um erro colossal pensar que os gregos é que estão mal, que nós por cá nos vamos aguentando. Os gregos já fizeram imenso, expondo a situação. Devemos-lhe isso. Agora deveria ser com a opinião pública de toda a Europa.

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