“A poesia não salva o mundo. Mas salva o minuto”

Dois poetas da mesma idade, a portuguesa Matilde Campilho e o carioca Mariano Marovatto, estiveram juntos no palco da Festa Literária Internacional de Paraty a tentar ajudar a salvar o mundo.

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Matilde Campilho Walter Craveiro/FLIP
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No palco da Tenda dos Autores, Matilde Campilho ao lado de dois poetas cariocas Mariano Marovatto e Carlito Azevedo (que moderou a conversa) Walter Craveiro/FLIP
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Mariano Marovatto Walter Craveiro/FLIP

Matilde Campilho “roubou a cena”, como estão a dizer por Paraty.

No palco da Tenda dos Autores, ao lado de dois poetas cariocas, Mariano Marovatto e Carlito Azevedo (que moderou a conversa), a escritora portuguesa emocionou com a sua poesia e não só. Até leu um poema inédito. Para ela, a poesia, a música, a pintura não salvam o mundo, mas salvam o minuto.

“Estou arrepiado”, diz Artur Miler na fila da Livraria da Travessa, na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), à espera para pagar o livro de poesia Jóquei, de Matilde Campilho, em que acabou de pegar. “Eu estava cansado, tinha lugar, falei vamos sentar, a gente descansa e vê o que ela tem a dizer, está no início. Ninguém quis ir embora. Todo o mundo quis ficar”, conta ao PÚBLICO como foi por acaso que assistiu à sessão A poesia em 2015 com a portuguesa que foi considerada a “musa da FLIP” deste ano. “Foi o auge de tudo que eu vi neste segundo dia na FLIP. Foi a coisa mais linda, mais maravilhosa.”

Explicou que ouve uns 100 audiolivros por ano — se o livro não está publicado em áudio, é como se não existisse, porque não tem tempo para ler. Por isso está na fila da Livraria da Travessa a comprar o livro de Matilde Campilho, vai lê-lo e ele próprio vai gravá-lo em áudio para depois ouvir. “Porque preciso ouvir isso, é muito bonito”, diz o engenheiro brasileiro que vive nos Estados Unidos.

Veio ao Brasil para o aniversário da irmã e antecipou a vinda para conseguir estar nesta festa literária. Ainda não sabia se ia conseguir um autógrafo, a fila era longa apesar da chuva, mas não se importava.

“Depois de a ouvir falar, o que me arrepiou, não é o autógrafo que vai arrepiar. A maneira como ela lia, a interpretação que faz da sua poesia é maravilhosa. Está revivendo o momento em que ela escreveu, parece que não foi embora ainda...”.

Musa na FLIP
Durante a sessão, tanto um poeta como o outro foram lendo os seus poemas. Quando Matilde Campilho, que nasceu em 1982 em Lisboa, respondia às perguntas falava com sotaque do Rio de Janeiro, cidade onde viveu vários anos; quando lia a sua poesia voltava ao sotaque original.

“A poesia é uma coisa que a gente faz em casa, no restaurante. Mesmo que tenha muita gente em volta, não tem ninguém. É uma relação minha com o papel. A poesia é íntima mesmo quando é malabarista”, começou por dizer Matilde Campilho, para quem o seu livro é ainda um monte de folhas rasgadas cheias de café, de Coca-Cola, de alguma cerveja. Reflecte um caminho de muitos anos, com os amigos que a acompanharam — entre eles, os poetas em palco — e que a chamavam para ir ver o mundo. Esse mundo que ela transformou em ficção e que agora perdeu para os leitores: “O meu livro já não é meu.”

A “musa da FLIP” deste ano, como os jornais brasileiros já nomeiam a escritora portuguesa (pela forma como consegue cativar os leitores e também pela sua beleza), confirmou que precisa também de uma musa para criar. Mas a sua musa é a própria poesia, ao longo do tempo foi-se apaixonando pela construção do poema.

“A gente é construção e não adianta fingir. A gente está aqui neste lugar lindo, com pessoas lindas, incríveis, mas o mundo está todo arrebentado. Aqui, na Europa, na Síria, nos nossos quartos, está tudo difícil”, lembrou. “A poesia, a música, uma pintura não salvam o mundo. Mas salvam o minuto. Isso é suficiente. A gente está aqui para dançar um pouquinho sobre os escombros. Não deixar que a poeira dê alergia nos olhos. Cada um faz como pode. O cirurgião vai tentar salvar todas as vidas que puder. A gente vai tentando salvar os segundinhos — da minha vida, da vida de todos meus amigos e de alguém que lê uma estrofe. E já é bom.” Palavras que levaram a uma salva de palmas na gigante plateia.

Matilde Campilho conseguiu fazer aquilo que noutros anos António Lobo Antunes e Valter Hugo Mãe também conseguiram: arrebatar a plateia, conquistar novos leitores, emocionar. Mas os tempos são outros, há menos pessoas a participar na festa, ainda há placas a avisar “temos vagas” em várias pousadas, vêem-se menos famosos pelas ruas de Paraty. O mercado do livro está em crise e o tempo não é de entusiasmo como já foi quando esses portugueses participaram no festival literário. Este ano tudo parece mais contido, sem euforias.

Poesia como Black Bloc
O outro companheiro de mesa, Mariano Marovatto, que nasceu no Rio de Janeiro também em 1982, chegou à FLIP com três livros publicados —Casa, Inclusive, aliás – a trajetória intelectual de Cacaso e a vida cultural brasileira de 67 a 87 e As quatro estações — e é também investigador, tendo trabalhado nos arquivos do poeta Cacaso (1944-1987) e na obra da escritora Ana Cristina César (1952-1983). Quando Carlito Azevedo lhe pediu para falar sobre “a onda de conservadorismo crescente no Brasil”, envergando uma t-shirt onde se lia “publish or perish” (“publique ou morra”, na tradução que fez para a plateia, explicando que a comprou ao Wikileaks), disse: “De certa forma, a poesia é o Black Bloc da linguagem. A gente tenta remar contra a maré. Eu não sei o que dizer deste momento tenebroso, de Idade Média, no Rio, no Brasil. É triste, eu não consigo dizer nada, a não ser escrever um livro sobre pessoas positivas, a [banda] Legião Urbana e o Renato Russo.” O poeta lamentou ainda a aprovação da redução da maioridade penal para 16 anos, aprovada pela Câmara dos Deputados brasileira na quarta-feira.

“Fiquei muito triste com a coisa de a câmara fazer esta manobra absurda. Espero que esses pastores saibam que agora, aos 16 anos, as filhas deles vão poder ficar peladas na Internet sem problema nenhum.”

Matilde Campilho, instigada a falar sobre o seu país, disse que Portugal é bem diferente do Brasil. “Une-nos a língua mas é toda uma outra história.” Desta vez, o sotaque era o de Portugal. “Venho de uma religião que diz a determinada altura: atire a primeira pedra quem nunca pecou. O que está acontecendo agora é que todo o mundo está achando que não peca. E todo o mundo está atirando pedras contra todo o mundo. As pessoas estão num fogo cruzado. Tem perigo na esquina. Não está fácil.”

Lembrou a alta taxa de desemprego em Portugal e deixou a pergunta: “Quem tem tempo para ler poesia quando tem fome? Se o estômago está vazio, às vezes nem o amor cabe.”

No entanto, Matilde acredita que este momento em que as pessoas estão tristes e cansadas vai ser superado. “Vai passar, também isto passará. Mas até lá o caminho é todo entre as veredas. Vamos juntos.” Palmas e os últimos poemas.

Mais tarde, na fila para os autógrafos, rodeada de amigas e com a edição portuguesa de Jóquei (Tinta da China) na mão, está Priscila de Carvalho, formada em Direito. Conheceu a obra de Matilde porque acompanhava os vídeos-poéticos que a escritora partilhou no YouTube. Por isso, encomendou a edição de Portugal através da Internet. Mas a primeira edição esgotou, a segunda também, finalmente conseguiu. Acabou por comprar também a edição brasileira que já tinha pedido a Matilde Campilho para assinar no evento Minha Língua, Minha Pátria, organizado pelo PÚBLICO e pela Livraria Cultura, em São Paulo, em que a poeta esteve no palco com Gregorio Duvivier. “Das duas vezes, Matilde foi diferente. Ela é encantadora. Escutá-la falar, não só a poesia, é incrível”, diz, entusiasmada.

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