Dinamarca: anúncio de mais uma deriva eurocéptica?

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Na Dinamarca é mais fácil ganhar eleições do que formar governos. Mas prevalece a arte do compromisso. Num país com outra cultura política, o quadro saído das eleições de quinta-feira seria um puzzle insolúvel. Para alguns, os resultados “anunciam uma nova era política” na Dinamarca e terão efeitos na Europa — o risco de mais uma frente eurocéptica.

A direita ganhou e a esquerda perdeu: “o bloco azul” (quatro partidos de direita) obteve 90 mandatos e o “vermelho” (cinco de esquerda) 89. Mas o vencedor foi outro: o Partido do Povo Dinamarquês (DF), de Kristian Thulesen Dahl, que ficou em segundo lugar e passou de 12,3 para 21,1%. É o partido “anti-imigrantes” e “anti-Europa”.

Quem perde ganha? O futuro primeiro-ministro deverá ser o liberal Lars Lokke Rasmussen: o seu partido ficou em terceiro lugar e teve o pior resultado desde há 25 anos. Sucede à social-democrata Helle Thorning-Schmidt, cujo partido foi o que teve mais votos e deputados. Em 2011, aconteceu o inverso: Rasmussen teve mais votos e os sociais-democratas tiveram o pior resultado em 100 anos; mas foi Thorning-Schmidt quem conseguiu reunir uma maioria. Os governos são frequentemente minoritários e sustentados por acordos parlamentares duramente negociados e, por vezes, de “geometria variável”.

Ignora-se se Dahl optará por entrar no Governo ou se negociará um acordo de apoio parlamentar com Rasmussen, o que lhe daria maior liberdade de manobra. “Para nós, o impacto político é muito mais importante do que termos ou não ministros”, diz um dos seus dirigentes. A ideia é tornar o Governo refém — “100% dependente de nós”. Mas pode ser uma mera manobra no leilão de ministérios.

Observa o jornalista dinamarquês Fleming Rose que os dois partidos vão ter de conciliar posições extremas. Rasmussen é (ou era) o mais europeísta dos políticos dinamarqueses. Dahl é eurocéptico e quer a realização de um referendo sobre a permanência na UE. Rasmussen defende o respeito por Schengen, enquanto Dahl exige o fecho das fronteiras. Os liberais querem cortar a despesa social e o DF quer aumentá-la — a sua política social é mais próxima da dos sociais-democratas.

Quem tenha seguido a série dinamarquesa Borgen pode imaginar que tudo se pode arranjar. Carl Bildt, antigo primeiro-ministro sueco, é mais céptico: “A cena política está muito mais fracturada. Será difícil formar Governo. [Os dois blocos] são ideologicamente menos coerentes do que no passado.”

Uma palavra sobre Helle Thorning-Schmidt: foi acusada de ter “traído” o seu programa eleitoral e continuado a política de rigor económico do Governo anterior. Tornou-se impopular. Só recomeçou a subir nas sondagens com os resultados económicos de 2014. Resumiu assim a sua política: perante o envelhecimento da população e a necessidade de restaurar a competitividade da economia, a questão não era conservar, mas garantir a perenidade do “modelo dinamarquês”, tornando-o menos dispendioso. “Penso que encontrei a boa fórmula: não ser popular, mas fazer o que era preciso.”

Há uma ironia na sua derrota: os bons resultados económicos passaram a economia para segundo plano, o que colocou a imigração no coração da campanha.

A ambição de Dahl

Há uma nota prévia a fazer sobre as mudanças de sensibilidade social na Dinamarca. Não é um problema de xenofobia. O fracasso do multiculturalismo e a incapacidade de integrar grande parte dos imigrantes, sobretudo os refugiados, puseram em causa a “generosidade nórdica”. A isto se somam, em relação aos muçulmanos, os ecos da crise das “caricaturas de Maomé” (2005) e o trauma do massacre do Charlie Hedbo, em Paris, seguido de dois atentados em Copenhaga cometidos por um dinamarquês de origem palestiniana.

A Europa está a sofrer uma enorme pressão migratória. Mas a Dinamarca não é o país mais afectado. A Suécia ou a Alemanha são-no muito mais. De resto, Copenhaga beneficia de uma excepção na política comunitária de imigração e asilo, de que não faz parte. Explica o jornalista dinamarquês Klaus Kragh que o DF conseguiu impor à sociedade a sua equação: “Podemos conservar o nosso Estado-Providência com o custo que os refugiados representam? O DF fez com que todas os temas se orientem em torno do Estado-Providência, do estrangeiro e da pressão do exterior.”

Foi o segredo da sua campanha eleitoral. “Penso que o Estado-Providência apenas pode existir numa sociedade relativamente fechada”, afirma Soren Espersen, líder do grupo parlamentar do DF.

O seu cavalo-de-batalha é agora o fecho das fronteiras — o que, para lá de Bruxelas, suecos e alemães não podem aceitar — e a proibição de toda a imigração não-ocidental. Propõem também o fim dos programas de integração “pagos com o dinheiro dos contribuintes”. No entanto, a Dinamarca precisa de mão-de-obra porque a população está a envelhecer e muitos dos trabalhadores do Leste vão ocupar empregos que os dinamarqueses rejeitam. Problemática é a situação dos refugiados: apenas um em cada quatro dos acolhidos entre 2000 e 2003 tem hoje um emprego.

O DF foi fundado em 1995 por Pia Kjærsgaard. Depois de ter sido olhado como extremista, é hoje encarado como “um partido como os outros”.

Não é apenas populista e eurocéptico. “Apresenta-se como o Partido Social-Democrata das origens, generoso no plano social e preocupado com os mais desfavorecidos”, explica Marlene Wind, da Universidade de Copenhaga. Visa em particular as populações idosas, modestas e que beneficiam de ajudas sociais.

Após o sucesso eleitoral, Dahl terá mais largas ambições e tencionará disputar a supremacia política tanto aos liberais como aos sociais-democratas. Será o teste da anunciada “nova era política”.

Europa

Na semana passada, os partidos do “bloco azul” proclamaram o seu apoio à iniciativa de David Cameron para renegociar os termos da participação britânica na UE. Não foi apenas uma vitória do primeiro-ministro britânico. Foi um triunfo de Dahl. Alguns liberais falaram em “capitulação de Rasmussen”.

É o desfecho de um debate. O DF apelava a uma adesão à iniciativa de Cameron e à realização de um referendo na Dinamarca sobre a UE — caso a Grã-Bretanha a abandone — “para restaurar a nossa soberania no controlo das nossas fronteiras, na política de imigração e na política financeira”. Rasmussen respondia que “seria um erro deixar-se arrastar pela estratégia de Cameron”. Preferia uma aliança com Merkel, “que quer a integração (...) e uma aliança que seja compatível com a especificidade dos Estados-membros”.


Enfim: é o anúncio de mais uma deriva dentro da UE.     

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