Mulher diz que prendeu filho na cave para o proteger

A família era conhecida pela GNR e pela Segurança Social. Mas nesta terça-feira, quando os guardas voltaram a ser chamados pelos vizinhos, descobriram o inesperado: um dos filhos preso numa cave nauseabunda. Suspeita-se que o homem, que sofrerá de “distúrbio psíquico”, vivia nesse espaço mínimo havia anos.

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Procuradora que arquivou caso considerou improvável que a mãe viesse a perder a sua tutela apenas por aprisionar os filhos. Nuno Ferreira Santos
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Há mais de 20 anos que na Rua Nova da Ribeira, na Amoreira, Cascais, os conflitos são frequentes. No lote 24, uma moradia de paredes por pintar, onde as persianas das janelas da frente nunca são abertas, vive um casal com dois filhos, bem conhecido de quem mora perto. A mulher já foi alvo de queixas, por agressão a vizinhos, conta Cidália Carmo, que vive mesmo em frente. “A polícia já foi muitas vezes chamada.” Nesta terça-feira voltou a acontecer. Mas desta vez a GNR de Alcabideche não só levou algemada a mãe de família, como encontrou preso na cave um homem de 38 anos. Suspeita-se que estivesse fechado havia anos, num compartimento sem condições, “com um cheiro nauseabundo”.

O homem que estava preso é filho da mulher com cerca de 60 anos de quem os vizinhos se queixam — “um demónio, essa mulher”, diz Cidália — e sofrerá de “algum distúrbio psíquico”, segundo as autoridades. Um dos moradores da Rua Nova da Ribeira interrogados pelos militares disse que não o via havia pelo menos oito anos — tantos quantos terá estado fechado. Esta informação ainda está, contudo, a ser confirmada pela GNR.

À polícia a mulher disse ter prendido o filho apenas para o proteger, já que este seria muito agressivo.

Ana Coelho, 64 anos, que mora a poucos metros, esteve algum tempo fora, regressou há quatro anos e diz que nunca viu o filho dos vizinhos. Mas lembra-se dele em jovem. “Ia à escola e brincava com os outros na rua.” Não se lembra de ter problemas. Cidália Carmo diz que há mais tempo que o perdeu de vista: “Cinco, seis anos, se calhar mais, o tempo passa tão depressa. Aqui na rua achávamos que ele tinha ido para uma instituição.”

Outra vizinha conta que a certa altura o rapaz começou de facto “a dar problemas” e que a mãe começou a fechá-lo em casa. “Às vezes via-o na varanda, a tentar sair.” Já Cidália Carmo garante que a família chegou a ser visitada por assistentes sociais, que nunca eram bem recebidas. Até que o rapaz deixou de ser visto. Os anos passaram. Nunca ninguém ouviu qualquer som suspeito. Nada. Tão pouco a guarda quando era chamada.

Mãe e filho serão cabo-verdianos e estarão em Portugal há cerca de 20 anos. Juntamente com eles vivia o companheiro da sexagenária e pai dos seus filhos, também com cerca de 60 anos, e uma jovem de 26 anos, irmã do homem encontrado preso na cave — a polícia suspeita que, por vezes, também fosse mantida à força em casa. Serão todos desempregados e sobrevivem com as verbas que lhes são pagas a título de Rendimento Social de Inserção.

Alertados por gemidos
Nesta terça-feira, a GNR de Alcabideche foi chamada ao local pelas 11h45, depois de ter recebido quatro telefonemas de vizinhos “reportando uma situação de ameaças, injúrias e agressões”, disse ao PÚBLICO o tenente Filipe Costa, comandante do subdestacamento da GNR de Alcabideche. Quando os militares chegaram, verificaram que a mulher do lote 24 tinha agredido um vizinho. Este ficou ferido num joelho e teve de ser transportado para o hospital.

A mulher já era conhecida das autoridades, tendo a GNR confirmado que recebeu várias queixas relativas a ameaças e agressões. O tenente Filipe Costa afirma, contudo, que não existe qualquer informação relativa a maus-tratos ao filho. “Já lá fomos várias vezes em anos anteriores, neste ano nem por isso”, refere o responsável da GNR, que insiste que este tipo de ocorrências são comuns naquela área.

Dentro da casa as autoridades encontraram facas e catanas, que segundo relatos dos vizinhos eram frequentemente usados para os ameaçar.

“O contacto com a senhora não foi fácil. Tinha um discurso sem qualquer coerência e suspeitamos, por isso, que possa ter uma anomalia psíquica, mas isso só poderá ser confirmado mais tarde por especialistas”, acrescentou o tenente Costa.

Poucos minutos após terem chegado ao local, os guardas ouviram gemidos vindos do interior da casa. Decidiram então entrar na habitação e foram guiados pelo ruído incessante até à cave, onde acabaram por encontrar um homem fechado.

“Encontrámos um portão de ferro fechado com correntes e um cadeado. Dentro da cave só encontrámos o homem e baldes. Não tinha nada que servisse para dormir e suspeitamos que fizesse as suas necessidades fisiológicas ali mesmo. A divisão não tem janelas. O homem não estava ferido nem com magreza característica de estar desnutrido, mas foi levado para o hospital”, acrescentou o tenente. Cidália foi uma das vizinhas que o viu sair, de maca. “Tinha umas barbas até ao peito.”

Avaliação psiquiátrica
Os vizinhos estranham que ele estivesse preso na cave — o acesso faz-se pelas traseiras, por um quintal apinhado de objectos (cadeiras, roupas, pedaços de madeira e de plástico, sacos de plástico...) virado para um terreno vazio. “A família fazia muita vida ali no quintal”, conta uma das moradoras. Dentro do quintal, avista-se uma porta de metal, com um cadeado a servir de fechadura, e uma janela minúscula, tapada. Seria esse o acesso ao local onde o homem estava preso. Os bombeiros de Alcabideche dizem que estava fechado numa divisão com cerca de uma dúzia de metros quadrados. O comandante da corporação, José Palha, descreve ainda: “A divisão tinha três paredes e era fechada com barras em ferro. Nessas grades havia uma porta que estava fechada com várias correntes que nós cortámos.”

Os bombeiros que entraram na cave destacaram o “cheiro nauseabundo e as condições sanitárias deploráveis”, que se resumiam a um balde para fazer as necessidades. “O homem, que tinha barba e cabelo comprido, aparentava estar bem nutrido”, descreve ainda José Palha, que refere que a vítima se ria sem razão aparente.

Os militares da GNR tentaram falar com ele para tentar perceber o que se teria passado, mas sem sucesso. A vítima respondeu com mais gemidos e com poucas palavras fora do contexto. Foi levado para o Hospital de Cascais. “Suspeitamos que possa ter também algum distúrbio psíquico”, referiu o tenente Costa.

O Hospital de Cascais confirma que o homem ficou internado na unidade, mas recusa-se, para já, a adiantar pormenores sobre o seu estado clínico. A irmã mais nova também está internada na instituição, tendo a mãe sido encaminhada para o Hospital Francisco Xavier, em Lisboa, onde deverá ser sujeita a uma avaliação psiquiátrica.

“O meu menino”
A Unidade Nacional de Contra Terrorismo da Polícia Judiciária, que tem a ser cargo os inquéritos por sequestro, está a investigar o caso. Não foi, contudo, aberto um processo-crime uma vez que os indícios apontam mais para um caso de natureza social. Não há, por isso, para já detenções nem arguidos.

O homem que estaria preso há vários anos na cave da habitação estaria referenciado pela Segurança Social como deficiente profundo, apesar de não estar a ser medicado. Aliás, segundo a PJ, toda a família estaria sinalizada pela Segurança Social, que conhecia os problemas mentais e a situação de pobreza em que viviam. Contactada pelo PÚBLICO, a instituição não respondeu, em tempo útil, sobre o tipo de acompanhamento e apoio que dava ao agregado.

A mãe foi inquirida esta terça-feira. “Estamos a tentar perceber o que se passou e o que levou a mãe a fechar o filho na cave, mas o discurso da mãe é desconexo. Até agora não conseguimos perceber o que sucedeu”, acrescentou o responsável da GNR. As autoridades sublinham a forma carinhosa como a mãe sempre se referiu ao filho, que tratou várias vezes como “o meu menino”.

No local estiveram ainda os Bombeiros de Alcabideche, a Protecção Civil e a Delegação de Saúde.

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