Lista VIP: cinco meses, 228 alertas, quatro nomes e cinco protagonistas

Com base na leitura cruzada dos relatórios da IGF e da Comissão de Protecção de Dados, fazemos uma reconstituição dos acontecimentos durante os cinco meses em que funcionou a bolsa de contribuintes VIP.

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António Brigas Afonso, ex-director-geral da AT, e José Maria Pires, ex-subdirector-geral Miguel Manso

Até surgir a polémica lista de contribuintes VIP, José Morujão Oliveira era um desconhecido funcionário da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT). O seu nome começou por aparecer discretamente na imprensa quando o caso começou a ganhar projecção. Agora, a Inspecção-Geral de Finanças (IGF) coloca este chefe de equipa multidisciplinar da segurança informática do fisco no centro da criação deste sistema de alerta automático, que permitiu saber durante cinco meses quem consultava os dados fiscais de quatro contribuintes: Cavaco Silva, Pedro Passos Coelho, Paulo Portas e Paulo Núncio.

O PÚBLICO fez uma leitura cruzada dos relatórios da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) e da Inspecção-Geral de Finanças (IGF), para reconstituir os principais acontecimentos durante os cerca de cinco meses em que a lista esteve a funcionar (de 29 de Setembro do ano passado a 10 de Março).

Uma das conclusões do inquérito da IGF, a cujo relatório completo o PÚBLICO teve acesso, embora o Ministério das Finanças não o tenha publicado na íntegra, é que “a configuração do mecanismo de alertas, a iniciativa pela sua implementação, bem como a selecção dos NIF a monitorizar, foi da exclusiva responsabilidade” de José Morujão Oliveira, que configurou os testes no software SPLUNK e recebia os registos no seu email.

O sistema terá sido implementado “à revelia de autorização superior”. Mas não é o único a surgir envolvido no caso. A António Brigas Afonso (ex-director-geral), José Maria Pires (ex-subdirector-geral) e Graciosa Martins Delgado (coordenadora dos sistemas de informação) também são apontados actos “susceptíveis de integrar diferentes ilícitos, graus de culpa e de censura”.

Percorrer a cronologia dos acontecimentos está longe de permitir saber tudo o que se passou nos corredores da AT. Há factos que as duas entidades não conseguiram apurar. Uma das questões que continua por esclarecer é a razão da escolha dos nomes VIP. Primeiro, havia três (Passos Coelho, Paulo Portas e Cavaco Silva). E mais tarde José Morujão Oliveira acrescentou o nome de Paulo Núncio, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, que tutela a administração fiscal.

Outra informação que se retira da leitura do relatório da IGF é que o secretário de Estado pergunta pela “existência de uma lista de contribuintes” VIP um dia depois de o director-geral da AT mandar cancelar o sistema de alertas. António Brigas Afonso responde que a lista não existe e que nunca existiu. A conclusão da IGF é a de que a explicação de Brigas Afonso “se traduziu numa informação incorrecta à tutela”, sendo que o ex-director-geral “reconhece que deveria ter agido com maior diligência”.

Os protagonistas
José Morujão Oliveira, chefe de equipa multidisciplinar da Área de Segurança Informática (ASI)
Segundo a IGF, a iniciativa de montar a lista partiu de si e foi ele quem seleccionou os quatro nomes. No seu email recebia um alerta com o registo dos acessos aos dados fiscais de Passos Coelho, Paulo Portas, Cavaco Silva e Paulo Núncio.

Graciosa Martins Delgado, coordenadora dos Sistemas de Informação
Concordou com a proposta de José Morujão Oliveira. “Nada fez” para verificar que a lista já não estava a funcionar depois de o director-geral da AT mandar cancelar o sistema, diz a IGF.

António Brigas Afonso, director-geral da AT
A IGF concluiu que o director-geral “não interveio directamente” na decisão de criar a lista VIP, “embora tenha tido conhecimento do seu teor”. Ao secretário de Estado dos Assuntos Fiscais disse que nunca tinha existido esse sistema de alarme.

José Maria Pires, subdirector-geral da AT
Aprovou a lista VIP num dia em que estava a substituir o director-geral.

Paulo Núncio, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (SEAF)
Negou ter dado instruções para criar o sistema de alerta. O seu nome foi acrescentado à lista na sequência de uma auditoria.

Os principais acontecimentos
26 de Setembro de 2014 O jornal i publica informações do IRS de Passos Coelho. A Direcção de Serviços de Auditoria Interna (DSAI) abre uma auditoria para saber quem acedeu aos dados do primeiro-ministro, sendo instaurados 33 processos disciplinares.

29 de Setembro Primeiro dia em que funciona a lista VIP. José Morujão Oliveira (ASI) configura o sistema de monitorização (usando o software SPLUNK). Inicialmente, só fazem parte da lista os NIF de Passos Coelho, Paulo Portas e Cavaco Silva. O nome de Paulo Núncio é acrescentado mais tarde.

30 de Setembro 3Morujão Oliveira elabora uma informação sobre a criação da bolsa VIP. Neste dia, o sistema já estava configurado, mas faltava ultimar a “proposta de implementação do processo”. O chefe de equipa da segurança informática enfatiza que a “solução tecnológica foi testada com sucesso” e que seria indispensável identificar os NIF a monitorizar. A coordenadora dos Sistemas de Informação, Graciosa Martins Delgado, emitiu um parecer positivo. A IGF não conseguiu apurar a data da resposta, apenas que a informação foi remetida ao gabinete do director-geral da AT a 9 de Outubro.

10 de Outubro O director-geral está ausente da AT e é o subdirector-geral José Maria Pires, seu substituto legal, quem aprova o sistema.




 
15 de Outubro O despacho de José Maria Pires dá entrada no gabinete da coordenadora dos Sistemas de Informação, que o reencaminha para José Morujão Oliveira.

20 de Outubro Só neste dia é que a DSAI terá tido “conhecimento efectivo” do despacho do subdirector-geral a aprovar a bolsa VIP.

23 de Outubro É dado o primeiro alerta relativo aos dados fiscais do Secretário de Estado Paulo Núncio, cujo nome não fazia parte da lista inicial. Segundo a IGF, esta foi a “primeira alteração” feita por Morujão Oliveira. O relatório da IGF não apura a razão pela qual o nome do governante foi acrescentado. Refere-se apenas que a indicação do NIF de Núncio surgiu “na sequência de uma auditoria” sobre o acesso aos seus dados. A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) também refere uma auditoria, mas não conseguiu saber a origem – apenas que “não corria nem nunca correu termos na DSAI qualquer processo de auditoria por consulta aos dados fiscais do SEAF”.

24 de Outubro A ASI – Morujão Oliveira – afirma em email enviado à DSAI que o processo “está apenas dependente da indicação à ASI dos NIF que serão objecto de alerta”. No entanto, Morujão Oliveira já tinha coligido alguns nomes.

6 de Novembro Morujão comunica à DSAI um alerta gerado por uma consulta dos dados de Passos Coelho. Nesse mesmo dia, o director da DSAI, Acácio Pinto, pede a instauração de um processo de averiguação. Concluiu-se que o acesso foi justificado.

 

 
28 de Novembro É enviado mais um alerta à DSAI, desta vez pelo acesso aos dados de Cavaco Silva. O director da DSAI pede para a situação ser analisada. “Tendo em conta que a consulta foi efectuada no Serviço de Finanças de Santiago de Cacém importa, numa primeira fase, através do respectivo chefe de finanças, apurar junto da funcionária o motivo da consulta aos dados do Presidente da República. Urgente.” O acesso foi considerado injustificado.


11 de Dezembro O PÚBLICO noticia a instauração de processos disciplinares a funcionários que acederam ao cadastro fiscal de Passos Coelho.

20 de Janeiro de 2015 A existência da lista VIP é referida por Vítor Lourenço, chefe de divisão dos serviços de auditoria, numa acção de formação da AT na Torre do Tombo, em Lisboa.

18 de Fevereiro A DSAI pede à área da segurança informática, por email, a indicação “dos critérios de constituição do grupo de contribuintes a monitorizar, denominados VIP, assim como a sua identificação (NIF e nome)”.

23 de Fevereiro O director-geral da AT manda cancelar o sistema de alerta, mas ele continua a funcionar até 10 de Março.




24 de Fevereiro O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais pergunta ao director-geral pela bolsa VIP. A IGF refere que Paulo Núncio, através de um ofício, pede esclarecimento sobre a “existência de uma lista de contribuintes (…) que, se forem consultados, fazem disparar os alarmes informáticos” e questiona “se a referida lista existe”. No mesmo dia, o director-geral da AT responde que “não existe nem nunca existiu”.

Ainda que o sistema de controlo tivesse sido cancelado na véspera, Morujão Oliveira responde a um pedido da DSAI, de 18 de Fevereiro, sobre os critérios de constituição do grupo VIP. Segundo a IGF, Morujão ainda faz alterações ao sistema de alerta, restringindo a pesquisa dos quatro NIF noutros sistemas de monitorização.

25 de Fevereiro O Jornal de Negócios revela que já tinham sido instaurados 27 processos disciplinares e refere as suspeitas do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI) em relação à existência da lista.

6 de Março O STI pede ao Provedor de Justiça que se pronuncie sobre uma “alegada” bolsa VIP, requerimento que só conhecido dias depois.

10 de Março É o último dia em que o sistema de alertas está efectivamente a funcionar.


Depois da lista VIP

12 de Março A Visão revela que a bolsa VIP tinha sido referida na acção de formação de 20 de Janeiro. Paulo Núncio nega ter elaborado a lista.

16 de Março O secretário de Estado ordena o inquérito à IGF.

18 de Março António Brigas Afonso e José Maria Pires demitem-se.

20 de Março António Brigas Afonso, José Maria Pires e Paulo Núncio são ouvidos no Parlamento.

31 de Março A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) confirma a existência da lista VIP, tendo recolhido provas que indiciam “ilícitos criminais”.

8 de Abril A Procuradoria-Geral da República confirma que o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa instaurou um inquérito.


 
 

15 de Abril Os partidos da maioria, PSD e CDS-PP, chumbam os pedidos do Bloco de Esquerda e do PCP para José Morujão Oliveira e Acácio Pinto (director da direcção de auditoria interna da AT) serem ouvidos no Parlamento.

20 de Maio Paulo Núncio recebe o relatório da IGF.

25 de Maio Cinco dias depois de ter o relatório, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais manda publicar as “conclusões e recomendações”.




26 de Maio São divulgadas apenas cinco páginas do relatório – com as conclusões e as recomendações. No entanto, o documento é enviado na íntegra à comissão parlamentar de orçamento e finanças, mas o ministério continuou sem divulgar as 50 páginas do documento.

O PÚBLICO divulga o relatório da IGF na íntegra aqui.

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