“A nossa função de ensino terá sempre de ser trabalhada com as empresas”

Daniel Traça, director da NOVA SBE, diz que os alunos de mestrado recebem um salário superior em 28% aos alunos com licenciatura, e que hoje é nos mestrados que se prepara os estudante para o mercado de trabalho.

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Para Daniel Traça, depois de Bolonha, os mestrados são hoje a formação por excelência Daniel Rocha

Daniel Traça conhece bem os corredores da Nova School of Business and Economics (Nova SBE, da Universidade Nova de Lisboa), onde se licenciou em Economia. Foi professor no Insead (França), na belga Solvay School of Economics and Management e ocupa agora o cargo de director da Nova, substituindo José Ferreira Machado numa altura em que a escola pública quer subir mais degraus na liga das melhores faculdades de gestão.

Para chegar ao topo vai utilizar o novo campus, instalado à beira-mar, como ferramenta de atracção de talento, palavra muito sublinhada na entrevista ao PÚBLICO. As novas instalações são, contudo, apenas um complemento da estratégia, cada vez mais focada na relação com as empresas e na internacionalização dos negócios. Daniel Traça dá conta que, com Bolonha e a dimensão cada vez mais global dos negócios, os mestrados são hoje a formação por excelência.

Assume o cargo numa altura de mudanças para a escola, com o projecto da nova sede. Já está tudo feito ou ainda há trabalho em curso?
Ainda há muito trabalho. A altura de mudança para esta escola começou muito antes e o projecto do campus é só uma parte. Há duas grandes mudanças no mundo da educação em Portugal e na Europa. Primeiro, no negócio, com a globalização, a internacionalização da economia portuguesa, que seja capaz de assegurar o seu lugar no mundo e tudo o que isso exige em termos de talento, conhecimento, formação e competências das pessoas. Mais bem ou mal gerida e com uma crise pelo meio, esta é uma mudança que ocorreu no mundo e à qual Portugal tem se se ajustar. A outra mudança é a reforma de Bolonha. Há ainda a questão demográfica que [fez aumentar] a competição pelos alunos. Vou-me centrar nas duas primeiras que, juntas, exigem à escola que esteja num ambiente de competição na Europa. Bolonha diz que os mercados cativos deixaram de existir e que se quisermos competir pelos bons alunos temos de competir com todas as escolas europeias. Ou ficamos uma escola nacional, local, com os alunos menos bons, ou teremos uma capacidade internacional e vamos tentar competir pelos alunos portugueses e estrangeiros. Para sermos relevantes temos de nos afirmar como uma escola de topo na Europa. Isso exige que consiga criar e desenvolver talento, com uma visão muito internacional, ligada à tecnologia, às empresas e à capacidade de inovar.

Bolonha está de facto a trazer essa competição de nível europeu?
Absolutamente.

Mas há a tendência das escolas tentarem segurar os seus alunos…
É o tal proteccionismo que terá muito pouca capacidade para sobreviver a prazo. Tenho alunos que vêm falar comigo. Já estiveram na Nova e agora querem ir para Espanha, para Inglaterra…

Refere-se a pessoas que já fizeram a licenciatura e que querem fazer mestrado?
Sim. E também tenho cada vez mais alunos que vêm de França, Itália ou Alemanha a dizerem que querem trabalhar connosco. E isto não tem nada a ver com o campus. Porque temos trabalhado para criar um ensino nesta lógica da internacionalização, de aproximação às empresas e das competências necessárias para uma economia globalizada. Isto com pouco marketing tem funcionado bem entre os alunos que falam com colegas de outras escolas que, por sua vez, também querem vir para aqui.

Isso requer que as aulas sejam dadas todas em inglês.
Sim, mas muito mais do que isso.

O ensino secundário do inglês coloca os alunos portugueses no mesmo patamar que os seus pares estrangeiros ou há desvantagens competitivas?
Na licenciatura o primeiro ano de transição é dado em português, mas este ano já vamos ter um percurso 100% em inglês para quem quiser. Quando terminam a licenciatura os alunos tiveram dois anos de aulas em inglês e adaptaram-se bem. Tanto que temos o sucesso que temos de empregabilidade. Depois, estes alunos ou fazem mestrado connosco ou vão pensar em programas fora. Podem ir para Espanha, Itália ou Suécia, onde os programas são em inglês. Até para França, um dos países mais agarrados à sua língua. Tudo nesta lógica de globalização e de empresas que precisam de pessoas que hoje estão no México e amanhã no Brasil ou Estados Unidos. A transformação tem sido precisamente preparar os alunos para este mundo de globalização de talento, em que uns portugueses vão sair, outros estrangeiros vão vir para Portugal. Há uma lógica muito defensiva de tentar manter os alunos, dar as aulas em português para não estarem preparados para saltar para fora…

… ou criar barreiras burocráticas à mudança de escola.
Exactamente. Isso é adiar esta torrente da globalização. Quanto mais tempo resistirmos mais avassalador será o seu efeito. Em Portugal demorámos muito tempo a ajustar-nos, outros países europeus ajustaram-se mais cedo e tiveram processos muito menos dolorosos do que o nosso.

Falou em novas competências. Quais são? O que tiveram de mudar em termos práticos nos programas?
Há várias. Em primeiro lugar, focámo-nos na preparação dos alunos para carreiras internacionais e isso passou por muitos contactos com as empresas multinacionais, inclusive por organizar visitas de estudos, por exemplo. Durante quatro anos fui com os alunos à Polónia ou a Espanha e durante uma semana visitámos empresas, falámos com antigos alunos sobre a experiência, para perceber como é a carreira nesses países. Depois, apostámos muito no contacto com as empresas. Não posso fazer um mestrado que é igual à licenciatura. Tem de ter uma grande ligação ao mundo empresarial para que o aluno, quando entra no mercado de trabalho e chega à empresa, nada daquilo seja novidade. Obviamente que toda a parte das soft skills é importante. Hoje e numa reacção à crise há um esforço para abordar mais as questões da ética nos negócios, num mundo global em que a concepção de ética é diferente em Portugal, na China ou no Brasil. No fundo para perceber como é que os alunos podem ser fiéis a eles próprios num mundo diversificado.

Disse que os mestrados devem preparar os alunos para irem para as empresas. Isso não devia acontecer já na licenciatura?
Cheguei à Nova em 2009 e Bolonha arrancou em 2007. Não tínhamos a certeza como é que as empresas se iam ajustar, se iam começar a recrutar muito na licenciatura. O que temos vindo a verificar tanto no mercado nacional como internacional é que as empresas até pegam nos alunos da licenciatura para fazer estágios curtos, mas é no mestrado que há empregabilidade.

A licenciatura perdeu valor?
Hoje nós vemos a licenciatura como um espaço de crescimento, de desenvolvimento pessoal, de estruturação cognitiva. No mestrado, digo aos meus alunos que chegam como alunos e saem como profissionais e têm de ter uma visão muito clara do que vai ser o futuro nos próximos anos. Metade dos alunos de mestrado vem de fora.

Assim, na prática, Bolonha teve o efeito de aumentar uma licenciatura para cinco anos…
Bolonha mudou a licenciatura por causa das competências. Por haver mais concorrência, hoje as escolas são obrigadas a dar uma proposta de valor muito clara, coisa a que antes não estavam obrigadas. Esta concorrência exigiu às escolas apresentarem programas de mestrado com muito valor e virados para o mercado. Fez com que as competências que antigamente não eram fortes, como a introdução no mercado de trabalho, a internacionalização, de valores individuais, passaram a estar no “core”. Isso fez com que os mestrados se tornaram muito mais ricos do que a antiga licenciatura.

Isolando o ambiente económico, significa que antes de Bolonha a licenciatura permitia maior empregabilidade do que agora?
É difícil dar essa resposta. Todos os alunos que acabam a licenciatura e que querem trabalhar têm empregabilidade. Mas entre os meus alunos há uma grande minoria que acaba a licenciatura e quer ir para o mercado de trabalho.

Com licenciatura ou mestrado, ambos competem pelo mesmo emprego. Provavelmente o salário será igual, o que faz com que as empresas prefiram alguém com mais formação, pelo mesmo custo…
À entrada no primeiro emprego, os salários dos alunos com mestrado são superiores ao vencimento dos alunos com licenciatura. Em 2013, e de acordo com o inquérito que fizemos, os alunos de mestrado recebiam um salário superior em 28%, contribuindo para este valor a nossa capacidade de proporcionar aos alunos da Nova SBE empregos no estrangeiro. Por outro lado, é importante referir que temos algumas evidências não estatísticas de que a progressão na carreira é também mais acelerada.

Na prática as empresas hoje querem alunos com mestrado?
A maior parte sim. E as que querem alunos com licenciatura é para os estágios de verão. Até podem trabalhar durante seis meses mas depois regressam para fazer o mestrado.

A longo prazo todos terão mestrado, se tiverem capacidade financeira para o pagar…
Obviamente isso é um desafio grande. E o esforço que temos feito, que é enorme, é tentar tanto quanto possível assegurar que os alunos com mérito tenham os meios para frequentaram o mestrado, quer seja com bolsas, quer seja com apoio e empresas.

Como é que define o mérito? Pela média?
Temos um processo que é independente da parte da faculdade, gerido pelos directores de programas. Olhamos para a média de entrada mas também para a experiência que têm, as suas actividades extracurriculares, para todas as suas dimensões. Esta lógica é muito importante porque tem a ver com a forma como nós vemos o mundo e a noção de talento a mudar. E como, por isso, ajustamos o nosso processo de admissões e de desenvolvimento de alunos.

Estas alterações fizeram com que os mestrados deixassem de ser uma ferramenta de investigação académica?
Sim. A investigação hoje está cada vez mais nos doutoramentos e em alguns mestrados específicos que estão mais vocacionados para dar acesso a programas de doutoramento. Aqui fizemos uma escolha clara. Os alunos, quando saírem já têm de ter definido o que querem no futuro. É mais importante a escola ajudá-los a escolher o que querem fazer. Decidem como querem usar o mestrado para a carreira que querem seguir. Esta visão coloca o aluno no centro do processo. Na licenciatura há cadeiras obrigatórias, nos mestrados há muito mais opcionais, por exemplo.  Há estes choques de Bolonha, e internacionais. Quando o asteróide chocou com o planeta Terra, visto de fora, diríamos que a Terra não iria sobreviver. Era habitada por dinossauros, não iam conseguir viver neste ambiente. E, no entanto, sobreviveu e com espécies que eram pequenas e que se desenvolveram. As mudanças no ambiente internacional de negócios e Bolonha abriram um espaço semelhante. Hoje é possível, sobretudo, nos mestrados, uma escola aparecer com uma mensagem nova e diferente e assumir a liderança porque o mercado estava aberto.

E a Nova é o mamífero que andava escondido?
É o mamífero que andava escondido e que de repente tem a oportunidade de crescer e se tornar mais forte. Ou se faz isso, ou não. O mercado americano abriu há mais de um século e hoje temos Harvard ou MIT.  Se não tivermos a ambição de ser uma escola de topo, todo o nosso talento, dos fantásticos alunos portugueses, vai para fora. Porque haverá escolas de primeira e escolas de segunda liga. Se formos uma escola de primeira liga teremos todo o talento português e estrangeiro a querer vir, com todo o impacto que isso tem na economia.

Sobre o campus...
O campus é a última peça desta mudança. Permite-nos diferenciação. Permite dizer que, não só somos uma excelente escola na ligação com as empresas, na formação que damos e na forma como tratamos os alunos -- e isto qualquer outra escola da Europa vai poder dizê-lo --, como também oferecemos uma proposta de estilo de vida, baseado naquilo que Portugal tem. Isto muito centrado no mercado de mestrados que tem jovens com 20 a 25 anos que querem estudar mas também querem viver os últimos anos da juventude num sítio onde se divirtam. Consigo oferecer algo que é de excelência, mas diferente e que não pode ser repetido por ninguém. Falta-nos ter o campus e a angariação de fundos para captar mais professores -- temos muitos internacionais mas precisamos de mais --. O campus vai atrair não só alunos, mas também professores internacionais que terão um life style fantástico e excelentes alunos. Perceber o talento que aqui existe é a minha maior motivação. Há pouco estava a perguntar-me se os alunos estavam bem preparados no inglês. Dei aulas em vários sítios fora de Portugal e os melhores alunos que apanhei foi cá.

Não necessariamente portugueses.
Também portugueses. Principalmente portugueses.

E onde ficam os alunos médios e os professores médios? Jamais entrarão na Faculdade de Economia da Nova?
Depende. Temos os standards do programa que são a nossa riqueza mais importante, são o que herdámos de quem nos fundou há quase 40 anos e são o nosso DNA. O rigor e a exigência fazem parte. Os alunos que consigam responder a isso devem ter lugar aqui. Mas neste momento os alunos que aceito vão muito além disto porque não tenho espaço. Em termos de grau de exigência, a escola podia aceitar mais alunos do que os que aceita. Mas a nível de mestrados não tenho mais espaço e nas licenciaturas não posso por exigência legal.

Têm quotas ao número de alunos estrangeiros que aceitam ou pode dar-se o caso de 70% dos estudantes não serem portugueses?
Não tenho quotas, foi uma coisa que nunca se colocou. Neste momento os alunos que concorrem são tratados de igual forma, quer sejam portugueses, quer sejam estrangeiros.

Não o chocaria ter 70% de alunos estrangeiros numa faculdade pública nacional?
Os nossos números estão muito longe disso e é uma pergunta que nunca coloquei. Temos 35% neste momento e o objectivo é chegar a 40 a 45%.

Sobre a factura do novo campus, o custo ronda 50 milhões.  Já angariaram 25 milhões. Deste montante quanto é doado por empresas e quanto é de antigos alunos?
Neste momento o valor dos donativos já é superior a 25 milhões de euros mas ainda não estamos em condições de divulgar. Este montante foi doado por, basicamente, empresas.

Quais são as contrapartidas oferecidas?
Tudo e mais alguma coisa. O que convence as empresas é o que oferecemos de volta. O mundo em que a pessoa puxava pela manga e pedia “Vá lá” mudou. O que temos de fazer é ir a cada empresa e perceber como é que podemos ajudar nas questões que têm a ver com conhecimento e com talento. Cada uma delas tem uma necessidade diferente e um pacote de contrapartidas diferente de acordo com as suas necessidades.

Pode dar-nos um exemplo de contrapartida?
Por exemplo, a Jerónimo Martins. Temos conversado com eles sobre a forma como podemos trabalhar no nosso mestrado para os poder ajudar no processo de gestão do talento que têm espalhado em Portugal, na Polónia e na Colômbia. Tem sido um desafio fantástico. Podemos olhar para o nosso mestrado e criar valências, ajustamo-lo dentro das nossas exigências e das necessidades da Jerónimo Martins.

E não o incomoda precisar de empresas e de marcas para atingir o objectivo de educação, sendo uma faculdade estatal?
O meu dever fundamental é para com os nossos alunos. O que mede a minha vontade de criar e desenvolver é o que permite dar mais valor aos meus alunos que, hoje, sabem que o mundo é concorrencial e exige ligação com as empresas.

A pergunta é mais no sentido de ter de depender financeiramente de empresas para ter o campus e desempenhar a função de ensinar. Não era melhor ter uma sala chamada Keynes [histórico economista] do que uma sala com nome de um banco?
A nossa função de ensino terá sempre de ser trabalhada com as empresas e refiro-me também a instituições, da Comissão Europeia às organizações não-governamentais. Acredito que esta necessidade de financiamento criou em nós uma urgência de criar valor. A ir àqueles a quem estamos a criar valor.

O financiamento público é mau?
É muito bom porque permite funcionar.

Mas não permite criar valor...
Quando sentimos que havia dificuldades e que não havia financiamento público para o nosso projecto tivemos de ser ainda mais pró-activos a trabalhar com empresas, com empregadores. Essa pro-actividade teve resultados do ponto de vista do financiamento mas também obrigou a escola a entrar em contacto com as empresas. Volto ao exemplo dos mamíferos. Estavam bem no seu canto, mas foi a mudança e as oportunidades que se criaram que os levaram a agir. Todas as escolas e pessoas têm aversão às mudanças e aos choques. Nós percebemos que o que muitos viam como ameaça – que é a questão de criar valor e ter uma relação com as empresas – é uma oportunidade.

Qual é a vossa noção de criação de valor? É um aluno terminar a sua formação, ter emprego garantido e ser um dia CEO?
É perceber o que hoje é exigido do talento. Um jovem vem para a faculdade, vai para o mundo lá fora e precisa de saber qual é o caminho que quer seguir, onde é que a sociedade precisa que crie valor. Significa ir para uma função e desempenhá-la com sucesso. Não se trata de chegar a CEO. O trabalho que fazemos e o que lhes digo é: “Eu não sei se vais ser um banqueiro de investimento, se vais trabalhar para uma ONG ou ajudar num campo de refugiados algures no mundo. Tens de ter noção do que queres e das competências que precisas para ter sucesso. E quando o faças, sê o melhor do mundo”. Criar valor é isto. Digo aos meus alunos: “Não deixem que escolham por vocês, não se deixem ir, não se acomodem. Tentem chegar mais longe e levar o que a escola os ensinou. Que o façam com princípios, com qualidade e esforço”.

A rede dos antigos alunos da Nova funciona como lobby de empregabilidade, no sentido positivo?
Absolutamente. O trabalho que temos feito é crítico para o sucesso. Hoje os antigos alunos vêm muito mais ao campus. Temos uma rede de mentores e isso significa que um aluno que, por exemplo, queira ir para o marketing na grande distribuição tem um mentor na área. Começa logo a perceber como é a vida de alguém que tem carreira neste sector e pode até perceber que não é isso que quer fazer. Estas redes trazem oportunidades de recrutamento, trazem as empresas, e isso tem-se verificado também nas multinacionais.

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